Com eleições presidenciais em curso no Brasil, temos no segundo turno a possibilidade de eleger um candidato de extrema direita para governar o país. Ele representa as ideias sociais mais retrógradas, apresentando para os problemas atuais de violência e pobreza, soluções fáceis com autoritarismo e mais violência.
Este candidato teve, no primeiro turno, 46% dos votos contra 28% do segundo colocado, o candidato de esquerda, que disputa a presidência com propostas de inclusão social e de um espaço novo para as cidades.
Mesmo considerando que a “grande mídia”, contrária aos governos de esquerda no Brasil, influencia os votos, temos que analisar porque estas ideias atraem tantas pessoas, inclusive muitas que estão envolvidas com trabalhos sociais e pastorais.
Vemos, com tristeza, que muitos pobres repetem os discursos dos ricos e, pior ainda, repetem o discurso da necessidade de resolução de problemas por meio da violência, quando sabemos que esta violência se volta sempre para os mais pobres e vulneráveis.
Isto faz com que repensemos a nossa ação evangelizadora nas diversas realidades onde atuamos e, sobretudo, nos faz repensar a nossa ação social e pastoral nas cidades.
O tema proposto para este painel refere-se à comunicação das bem-aventuranças e, para falar das bem-aventuranças e do anúncio da paz na cidade, reportemo-nos antes a alguns dos pressupostos que definem a nossa ação e que justificam tal anúncio.
Moro na cidade de São Paulo há 32 anos, vinda de uma pequena cidade do interior de São Paulo (Brasil) onde, durante 18 anos, vivi e trabalhei na zona rural. Em muito do que vou falar sobre a vida na cidade, falo também de mim mesma, como alguém que conhece o fluxo migratório do campo para a cidade pela própria experiência.
Trazemos a história do campo e da cidade marcada em nosso corpo, em nossa própria história e o anúncio das bem-aventuranças ganha sentido a partir de onde se fala e do porquê se fala.
Um misto de estranhamento e encantamento nos invade ao olhar para a cidade. Ela é vista como o lugar das possibilidades, das oportunidades, de realização da felicidade e isto explica parte do que ocorre especialmente em relação aos fluxos migratórios do campo para a cidade, que vão além das necessidades primárias de sobrevivência, como casa, comida, emprego etc.
A cidade é atraente e sedutora. É lugar de liberdade e pode esconder o que não queremos mostrar (anonimato) e mostrar o que estava escondido por falta de visibilidade (exposição de si mesmo e de sua cultura, tendo a cidade como palco).
O anúncio do reino de Deus para as pessoas e grupos que vivem na cidade, implica uma dimensão utópica, implica querer mudanças para a realidade vivida. Em nossa ação evangélica anunciamos um mundo novo, diferente deste em que vivemos.
Um reino de justiça e de fraternidade que desejamos ter para nós e para as demais pessoas com quem convivemos e, de modo geral, para o planeta. Anunciar as bem-aventuranças implica envolvimento e responsabilidade com o outro / com os outros. Saímos de uma ação apenas individual para uma ação também coletiva.
Descrever a cidade, de modo geral, é tarefa simples. A análise desta realidade, no entanto, é bem mais complexa. Um olhar um pouco mais atento para a cidade revela as contradições existentes e as disparidades nas condições de atendimento por parte dos serviços públicos entre as suas diferentes regiões, onde os espaços físicos são demarcados para os diferentes grupos sociais.
São Paulo é uma das cidades mais ricas do planeta. Seu Produto Interno Bruto (PIB) atual é de mais de R$ 600 bilhões. A cidade figura entre as dez mais opulentas do mundo. Seu orçamento é igualmente significativo, passando de R$ 50 bilhões ao ano desde 2014.
Na média feita por pessoa que mora na cidade, poderíamos dizer que todos vivem bem. Então, onde está o problema? Podemos dizer que muitos dos problemas enfrentados na cidade tem suas causas nas desigualdades sociais.
Uma pesquisa da Rede Nossa São Paulo (2017) aponta dados sobre a desigualdade na cidade. Sobre a expectativa de vida, por exemplo, uma pessoa moradora do Jardim Ângela, na zona sul da capital, vive em média 55 anos, enquanto quem mora em uma das regiões mais nobres da cidade, conhecida como Jardins, vive em média até os 80 anos. São 25 anos de diferença no tempo médio de vida que são retirados da população periférica.
Em relação à cor/raça, nas regiões centrais da capital, mais ricas e com maior infraestrutura urbana, a taxa da população negra em relação aos brancos não chega a 20%.
No entanto, quando saímos do centro expandido e vamos para as periferias, o percentual de negros e negras sobe para 40%. E, ainda, quando vamos para os extremos da cidade, em especial para os limites das regiões leste e sul, observamos que essa população passa de 50%.
Em relação à violência contra os jovens, vemos que as discrepâncias são significativas. No Itaim Bibi, uma das áreas nobres da cidade, a taxa de homicídio juvenil em 2017 era zero na faixa etária de 15 a 29 anos, enquanto no distrito do Itaim Paulista, zona leste da cidade, esse indicador subia para 66 homicídios de jovens de 15 a 29 anos para cada porção de 100 mil habitantes.
Não podemos perder a capacidade de indignação contra a desigualdade, contra a violência causada por esta falta de equidade social. A pobreza bate em nossa porta, na janela de nosso carro no farol das ruas, nas calçadas por onde caminhamos na cidade etc.
É bom lembrar que a forma como a cidade está organizada interessa a alguns grupos e estes investem na ideia da naturalização da pobreza e das diferenças sociais.
Se não nos indignamos com esta situação que exclui e mata pessoas, não podemos falar de anúncio de paz. Quem ganha com as diferenças sociais não quer mudança. Quem deseja mudanças precisa lutar por elas; elas não acontecem “da noite para o dia” e nem “caem do céu”.
São forjadas a partir da ação contínua em favor da justiça, da fraternidade, da garantia da igualdade de direitos para todas as pessoas. É preciso insistir, a cada dia e em cada ação evangelizadora, que a paz só é possível com justiça social.
Para uma análise do ponto de vista de quem se indigna com a violência, com a pobreza e com a desigualdade, podemos dizer que a cidade é:
- Um lugar de encontro. Encontro das diferentes formas de ver o mundo, de etnias, de religiões e de distintas orientações sexuais;
- Um lugar de expressão. Em princípio, na cidade, todos podemos nos expressar, sejam com ideias e ideais e nas diferentes formas de arte e de manifestação pública;
- Um lugar do anonimato. Podemos passar desapercebidos na multidão. Viver histórias sem que elas sejam publicizadas;
- Um lugar da comunicação. Entre pessoas, bairros, multidões etc. Além da facilidade da comunicação por meios eletrônicos e digitais. A mobilidade urbana também é favorável por ter serviços sociais disponíveis com mais possibilidade de acesso e em menor tempo, como para atendimento médico e escolar, por exemplo.
Mas… ao falar da cidade como espaço de comunicação, precisamos falar também dos limites desta comunicação. Quem tem o poder financeiro, econômico e político, em geral tem também o poder de comunicação, ou seja, tem as facilidades para as concessões de rádios e de TVs e dominam os territórios nacionais com a veiculação do seu ponto de vista sobre o mundo, sobre as pessoas e o seu jeito de ver e o lugar de cada uma no contexto social.
Ou seja, os meios de comunicação não estão com o povo que mora na parte empobrecida da cidade, que está incluída no sistema econômico apenas na condição de excluído. Este é consumidor da comunicação que lhes é oferecida.
A comunicação midiática virou espetáculo, inclusive da violência, conforme podemos ver nos programas de notícias, onde morte e violência são citadas à exaustão. Já não se comove com o anúncio de morte de uma pessoa assassinada; é preciso uma chacina para chamar a atenção do público e fazer subir a audiência.
A morte apesentada como espetáculo se naturaliza. O entretenimento dos canais abertos é feito para vender produtos e a forma como são veiculadas as mensagens, explícitas ou subliminarmente, valoriza o individualismo, o mérito pessoal, o consumismo e, recentemente, incita mais fortemente o ódio e o desrespeito pelo diferente.
As Igrejas e as religiões não podem ignorar estes dados ao anunciar o evangelho. Não podem se furtar à denúncia da exploração, da escravização e da violência como o faziam os profetas no primeiro testamento.
Como cristãs/aos, temos o dever moral de denunciar:
- as injustiças, as mazelas e o sofrimento dos pobres e vulneráveis;
- a violência e extermínio de jovens negros das periferias;
- a violência contra as mulheres;
- o preconceito e a discriminação dos que consideramos ser diferente de nós (gênero, etnia, religião etc.);
- a escravidão moderna – no campo e na cidade – com novos formatos, mas tão graves e indignos quanto às primeiras experiências de escravidão do país.
- a violência contra os povos indígenas.
Porém não basta denunciar. É preciso compreender a realidade e identificar o que provoca a violência para agir em favor da paz.
Concluindo, apresentamos alguns desafios em nosso trabalho de comunicação das bem-aventuranças para as cidades do Brasil, da América Latina e Caribe:
- Escutar a voz das vítimas. A escuta é um serviço pastoral fundamental na Igreja;
- Estar com as vítimas. Conhecer a sua história e lutas pela sobrevivência;
- Sair dos templos e ir ao encontro das pessoas. Levar a esperança e coragem para a vida pessoal e comunitária;
- Agir em favor das vítimas. Defender suas causas e motivar sua participação em lutas sociais;
- Abrir-se para o debate sobre as questões étnicas e de gênero;
- Construir formas de diálogo e cooperação com as igrejas cristãs e com as religiões tendo como horizonte a justiça, a fraternidade e a paz.
Diante desta reflexão, cabe-nos perguntar: qual é a mensagem a ser comunicada para a cidade? como anunciar as bem-aventuranças para os pobres e empobrecidos?
Não podemos esquecer que existem ricas experiências pastorais em nossas paróquias e comunidades que vão na contramão da opressão, da exploração e da violência, ou seja, experiências de acolhimento, de ajuda mútua, de inclusão, de escuta, de construção de novas relações e de envolvimento social que nos fazem acreditar que é possível construir um mundo mais justo e fraterno.
Os meios de comunicação para o anúncio das bem-aventuranças não devem ser a única preocupação no processo de evangelização e de transformação social, mas pressupõem a clareza da concepção que fundamenta a nossa ação e a certeza do caminho a seguir para o alcance dos objetivos.
Ao ler Mateus, 5, 1-12, com este olhar citado na reflexão deste texto, nosso anúncio das bem-aventuranças ganham um sentido mais profundo. Quando falarmos de pobres, sabemos quem são os pobres aos quais nos referimos. Quando falamos de paz sabemos qual é a paz que almejamos e que só a conquistaremos com justiça social.
1.Vendo aquelas multidões, Jesus subiu à montanha. Sentou-se e seus discípulos aproximaram-se dele.
2.Então abriu a boca e lhes ensinava, dizendo:
3.Bem-aventurados os que têm um coração de pobre, porque deles é o Reino dos céus!
4.Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados!
5.Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra!
6.Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados!
7.Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia!
8.Bem-aventurados os puros de coração, porque verão Deus!
9.Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus!
10.Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos céus!
11.Bem-aventurados sereis quando vos caluniarem, quando vos perseguirem e disserem falsamente todo o mal contra vós por causa de mim.
12.Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus, pois assim perseguiram os profetas que vieram antes de vós.
Com ousadia e humildade, acrescentamos um versículo a esta reflexão: Bem-aventurados seremos nós ao denunciarmos as injustiças e anunciarmos a paz!
Lourdes de Fatima Paschoaletto Possani [2]
[1] Este texto é parte da explanação feita no Painel de expertos nº 5 “Un grand evangelio para una grand ciudad”, com o tema ¡Bienaventurados los comunicadores de paz en la ciudad!, no 1º Encuentro Continental de Pastoral Urbana, em Guadalajara, México, em outubro de 2018.
[2] Mestre e doutora em Educação: Currículo, pela pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Trabalha como Coordenadora Pedagógica e responde, interinamente, desde agosto de 2018, pela Coordenação Geral no Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular – CESEEP. São Paulo, Brasil.
Bibliografia
CONBLIN, José. Viver na cidade. In: BEOZZO, José Oscar (org.). Curso de Verão. Coleção Teologia Popular. Ano VIII. São Paulo: Paulus, 1994.
REDE NOSSA SÃO PAULO. Pesquisa Mobilidade Urbana. São Paulo: 2017
SAMPAIO, Américo. Por uma cidade justa, humana e popular: os desafios para a redução das desigualdades territoriais, sociais e na mobilidade urbana em São Paulo. In: POSSANI, Lourdes de Fatima Paschoaletto e FRANCO, Cecilia Bernardete. Por uma cidade acolhedora: somos todos migrantes. Coleção Teologia Popular. Ano XXXII. São Paulo: Paulus, 2018 (no prelo).