Reprodução: Boletim Rede de Cristãos
A temática e história do diálogo inter-religioso sempre esteve conectada mais as elites religiosas que ao popular. Os grandes encontros acadêmicos sobre textos sagrados, hermenêuticas, exegeses e todas essas palavras difíceis ou os grandes encontros de lideranças religiosas representando um modelo único da fé professada. Assim como Manoel de Barros, eu me importo mais com as coisas ‘desimportantes’, por isso aposto mais na palavra interfé, que desloca o religiosos como institucional e parte para vida. O uso da palavra interfé se remete ao pensamento da teóloga chinesa pós-colonial Kwok Pui-Lan, que acredita que são nas conversações entre pessoas de fé viva, para além de instituições e sistemas de doutrinários, que há potencialidades de transformação, individuais e coletivas.
Esse diálogo interfé acontece no nosso cotidiano e tem a motivação de lutas concretas de transformação social. Quando estava na estudando na Índia ouvi uma vez que o diálogo inter-religioso é mais cabeça do que coração, a princípio não compreendi, estava lá mergulhada na mística hindu-cristã dos sábios e místicas, mas amadurecendo um pouco mais a partir dos aprendizados, principalmente com a comunidade Dalit, o diálogo inter-religioso não deve ficar apenas nos estudos da religião, nas poesias e belezas que encontramos, ou nos encontros sobre temas metafísicos do qual se tira uma foto com as lideranças representadas e acaba. O diálogo não deve ser apenas isso, mas antes, o diálogo inter-religioso deve ser cabeça, cabeça que pensa onde os pés pisam para a luta em busca de justiça, pão, moradia e direitos.
No dia 21 de janeiro é celebrado o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa e o Dia Mundial da Religião. A data foi escolhida em homenagem à Iyalorixá Mãe Gilda, que foi vítima de intolerância religiosa no final de 1999, vindo a morrer após entrar em processo contra a Igreja Universal do Reino de Deus. Atualmente estamos vivendo uma onda fortemente fundamentalista que desencanta os processos da multiplicidade religiosa de nosso país. O fundamentalismo religioso se mostra em nosso cotidiano a partir de diversas faces, entre elas a intolerância religiosa, que enxerga que há uma guerra contra o mal: tudo aquilo que não sou, é meu inimigo e deve ser destruído, aniquilado. As religiões de matriz africana têm sido as principais vítimas desse discurso, sendo seus frequentadores e lideranças afetados nas dimensões físicas e psicológicas.
Terreiros tem sido destruídos em nosso país, e também casa de rezas indígenas, tudo isso instigado por discursos fundamentalistas neopentecostais presentes em parte da igreja evangélica brasileira e segmentos católicos neopentecostalizados. Isso tem o nome de “racismo religioso”. Podemos definir o termo como é proposto na cartilha dos Terreiros em Luta: racismo religioso é “um conjunto de práticas violentas que expressam a discriminação e o ódio pelas religiões de matriz africana e seus adeptos, assim como pelos territórios sagrados, tradições e culturas afro-brasileiras.”
Como Angela Davis pontua: “Numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista”. Mais do que nunca, precisamos promover diálogo interfé nas nossas comunidades, e que essa prática esteja comprometida com o combate ao racismo religioso e seja antirracista. Nossas vivências interfés devem tem como base a educação popular, que é enraizada na justiça social, e construída com um grande mutirão de ensinantes & aprendentes, que estão em posições cambiáveis conforme o ritmo, a luz, o cheiro, é o que pode impulsionar o reencantamento da a vida, a partir de lógicas interfés, como um “ato de desobediência, transgressão, invenção e reconexão” . Afirmando, assim, a vida pulsante dos corpos da religião frente à intolerância religiosa, que enraivecida da alegria, mata e destrói corpos encantados.
O desencanto do racismo religioso e intolerância religiosa, que nega a vida em sua plenitude, deve ser confrontado: povo em movimento pelo encantamento do mundo a partir da luta em seus territórios, buscando direitos e celebrando a vida. A construção desse diálogo interfé antirracista será um trabalho longo, denunciando e enfrentando os fundamentalismos, resgatando a poética do encantamento como fonte de criatividade, alterando e questionando as epistemologias do diálogo inter-religioso e propondo caminhos a partir dos territórios. Essa pequena reflexão é uma invocação às pessoas de fé viva, as tradições múltiplas de nosso país, a construirmos juntos um diálogo interfé antirracista.
Angelica Tostes
Teóloga, mestra em Ciências da Religião, coordenadora auxiliar de cursos do CESEEP, professora e pesquisadora do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.