O mês de julho foi um divisor de águas na minha vida pela oportunidade que tive de compartilhar 15 dias com irmãos e irmãs de lugares diversos de Nuestra Latinoamerica que, assim como eu, abriram o coração para saborear o diálogo inter-religioso através do Curso Latino-Americano de Ecumenismo e Diálogo Inter-Religioso do CESEEP. O verbo saborear aqui está inserido de propósito na minha narrativa pois nas matrizes religiosas nas quais mergulhamos coletivamente, a fé se manifesta nos múltiplos sabores da vida: nos frutos da terra que nutrem o corpo, na beleza que alimenta as retinas, na fruição da dança, nos odores dos incensos e nas fumaças que inebriam a reza-canto, beleza que soa em melodias de amor e fé.
O sagrado inegavelmente habita nas mais diversas manifestações do corpo que se entrega ao Divino transcendente e imanente: sim, isto pude vivenciar e testemunho que tal novidade enraizou-se em mim visceralmente, por isso transbordo estas palavras. A diversidade religiosa é encantadora pois perceber que diferentes linguagens se mobilizam para expressar o amor ao sagrado abre um caminho, inaugura uma jornada interna, de si para si, rumo ao conhecimento de nós mesmos ao contemplar, extasiados, a mística que dá sentido à vida de outrem.
Isso deveria nos unir como gentes que somos, posto que habitamos a mesma Casa Comum e desfrutamos da generosa acolhida de Pachamama que nos nutre em todo tempo. Porém, episódios de intolerância logo foram experimentados por companheiros de nosso grupo, quando ao partilhar generosamente e expor o desejo de honrar a memória do que vivemos com as matrizes religiosas não cristãs, receberam ataques nas redes sociais, movidos pelo racismo religioso. A incompreensão de que a abertura ao diálogo é fundamental não apenas para a nossa própria experiência de fé mas também como ferramenta de fortalecimento dos vínculos democráticos fez amigos mais chegados que irmãos se sentirem fragilizados, postos em situação de vulnerabilidade emocional, em meio a um processo tão rico de amor e vivências plenas de significados.
A partir desse fato e do óbvio incômodo que nos causou, me propus a apresentar algumas provocações oportunas aos que chamarei aqui de “herdeiros do Verbo”, ou seja, aos que me leem e sabem que o chamado para ser caminhante ao lado do Cristo nos faz trilhar veredas desconhecidas mas pautadas pelo diálogo amoroso. Lhes provoco: como pode alguém que afirma ser habitado pela palavra, divina chama que preenche tudo que existe, que cria mundos tantos, que baila acima do caos gerando vida e deslumbramento, não perceber belezas múltiplas na construção de outras espiritualidades que não a sua somente?
Como podem mentes e corações paridos pela força soberana que move o Eterno para fora de si, o faz penetrar no tempo e no espaço e florescer como o mistério da encarnação que transforma Verbo em corpo-carne-território no subúrbio do mundo, redimindo a luta e a resistência dos marginais da terra, serem impermeáveis a humildade do acolhimento? É impensável um Deus que manifesta sua necessidade urgente de comunicar-se, de tornar-se comum a todos, fazer-se inteligível, ter entre seus seguidores pessoas indispostas a abertura ao outro, seu igual, irmão na jornada da existência finita nesse planeta tão cheio de mistério e encantarias! Como um corpo que existe e se move por pura intenção divina e que encontra na comunicação da graça através da fé a bússola metafísica a sulear sua vida, não permite que haja espaço para a troca, para uma escuta atenta, para a percepção dos signos sacros que sustentam a alma de pessoas-gente-como-si-mesmo?
Essas e tantas outras perguntas me ocuparam o coração após esse curso que me fez compreender que o diálogo inter-religioso é questão vital para o bem viver desfrutado coletivamente posto que esta pauta lança luz sobre a disposição que temos para sermos verdadeiramente herdeiros deste Verbo que atravessa multiversos no afã benfazejo de comunicar graça e amor. O posicionamento dialogal na vida aponta para o fato mais fundante de quem somos: se estamos ao lado dos que crucificaram ou dos que choram a morte e celebram a ressurreição, a vida como vencedora e as possibilidades de recomeçar sempre que necessário.
Encerro esse desaguar com o convite solene ao autoexame e à aproximação gentil do sagrado que habita outras gentes. Considere que a bondade infinita da encarnação do Verbo que em nós gesta diariamente nossas práticas de fé, age amorosamente para nos constranger a sermos mais humanos e degustar com prazer a vida que recebemos como dádiva. O convite que a nós foi feito pelo Verbo, quando nos transformou em herdeiros de Si mesmo, foi para sermos testemunhas da boniteza da vida, cartas vivas de poesia cósmica e de entranháveis afetos que não se encerram em nosso peito mas nos atravessam a alma e frutificam em todas as criaturas. Sejamos, pois!
Priscilla dos Reis Ribeiro é Mestranda em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia (HCTE) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro onde sua área de interesse é Antropologia e Indigenismo; Mestre em Teologia Histórica pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Pós-graduada em Educação pela Harvard Graduate School of Education, Licenciada em Música pela Uni-Rio. É ecoteóloga feminista indigenista, articuladora de Direitos Humanos em diversos coletivos e membra associada do CESEEP.