A Proposta de Emenda Constitucional (PEC), nº 99, de 2011, que autoriza igrejas a questionarem regras e leis no Supremo Tribunal Federal (STF), teve, recentemente, parecer aprovado pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados. Está é composta, em sua maioria, por integrantes da Bancada Evangélica do Congresso.
A Emenda, de autoria do deputado João Campos [Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB – Goiás], deve passar ainda por votação no plenário da Câmara e no Senado. Caso seja novamente aprovada, as associações religiosas de âmbito nacional poderão apresentar Ações de Inconstitucionalidade e Ações Declaratórias de Constitucionalidade de Leis, além de Atos Normativos junto a Constituição Federal.
Para o presidente do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), nesta entrevista exclusiva à Adital, reverendo Flávio Irala, da Igreja Anglicana, a aprovação dessa PEC provocaria uma aumento mais forte dos casos de intolerância religiosa no país.
Ele afirma que a verdadeira necessidade da sociedade brasileira é de distribuição de renda, mudanças nas políticas de segurança pública, garantias de direitos de território aos povos indígenas, de ações concretas para superar o racismo e de combate à violência contra a mulher.
Confira a entrevista de Dom Flávio Irala concedida à Adital:
Adital – Qual o posicionamento do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs no Brasil a respeito da PEC 99/2011, tendo em vista que, constitucionalmente, o Brasil é um país laico? As igrejas devem ter esse privilégio no Poder Judiciário?
Dom Flávio Irala – A PEC 99/11 apresenta um tema complexo e delicado. Sabemos que ela foi proposta no contexto de ampliação de direitos para alguns grupos, que não se consideravam com seus direitos civis plenamente reconhecidos. Alguns desses direitos ferem a compreensão doutrinária de algumas igrejas.
A diversidade religiosa, no Brasil, é muito grande. A Constituição Federal de 1988 garante a todas as religiões o direito à igualdade, à prática de culto, à liberdade religiosa. É, portanto, uma Constituição bastante generosa com as religiões. Cabe ao Estado, que é laico, não privilegiar nenhuma organização religiosa em específico e nem interferir nas organizações religiosas. Todas devem ter seu direito de culto preservado pelo Estado. Agora, de igual maneira, não cabe às organizações religiosas interferirem em decisões que cabem ao Estado, ainda mais em um Estado democrático de direito, que deve estar a serviço de todas as pessoas.
A partir do momento em que a PEC 99/11 restringe que teriam capacidade postulatória para proporem Ação Direta de Inconstitucionalidade e Ação Declaratória de Constitucionalidade somente as organizações religiosas de caráter nacional, compreende-se que há certo privilégio em relação a determinadas organizações.
Como ficariam, nesse caso, religiões menores, mas culturalmente expressivas, como as religiões de matriz africana, que embora estejam em todo Brasil, não estão organizadas em uma única representação nacional? As organizações religiosas têm compreensões diferentes sobre temas variados. Como ficaria isso? Se cada organização, a partir da sua compreensão doutrinária sobre os fatos, entrar com Ações Diretas de Inconstitucionalidade ou com Ações Declaratórias de Constitucionalidade? Quais são os critérios para aceitar organizações religiosas de caráter nacional e excluir outras?
Além disso, existem inúmeras organizações da sociedade civil, laicas, principalmente as relacionadas aos direitos humanos, que seriam excluídas de direitos similares. Essas organizações também têm grande capacidade ética, moral, para se posicionarem em relação a temas relacionados com o bem comum. Por que diferenciar?
Outra questão interessante é que a PEC 99/11 não explica o que são organizações religiosas. Este é um conceito aberto. Não há, na Constituição Federal, algo que caracterize o que é uma organização religiosa. Ter uma PEC dessas aprovadas não seria muito benéfico para as próprias religiões. Creio que ela mais nos afastaria umas das outras do que nos aproximaria. A separação entre religião e Estado é positiva para as próprias organizações religiosas. Esta separação precisa ser preservada.
Adital – Como o Conselho vê a participação da religião nos processos políticos no Brasil?
Dom Flávio – No contexto de luta pela abertura democrática, as religiões, em especial algumas pessoas ligadas às igrejas históricas e organizações ecumênicas, tiveram um papel ativo em favor da abertura democrática.
Lideranças religiosas foram exiladas, outras foram presas, algumas foram torturadas. A maioria dessas pessoas era leiga. Muitos movimentos sociais, como os de luta pela terra, trabalho, moradia, contra o racismo, tiveram forte apoio de organizações religiosas. Sempre que a participação política das religiões está vinculada à ampliação da cidadania e da participação popular, ela é muito positiva. Ou, então, em promover espaços de reflexão sobre valores sociais, por exemplo, o espírito coletivo X individualismo, diálogo X exclusivismo.
No entanto, o que temos visto, nos últimos anos, são lideranças políticas com identidade religiosas, às vezes, com apoio, ora implícito, ora explícito, de instituições religiosas, atuando na política representativa, para a defesa de interesses. Ou, então, para fazer lobby para que seus dogmas sirvam como critério de orientação para a aprovação ou não de determinadas leis.
Isto eu vejo como algo delicado. Não podemos tornar as estruturas do Estado religiosas. Em alguns países onde isso acontece, vemos que o resultado é negativo. A religião não precisa e nem deve se autoexcluir da vida política. No entanto, sua participação precisa ser no âmbito publico, na ampliação da cidadania.
Ofereço um exemplo. No mês de outubro [de 2015], organizações religiosas foram em uma missão ecumênica para o [Estado do] Mato Grosso do Sul prestar solidariedade ao povo Guarani-Kaiowá e apoiar a instalação da CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito] do Genocídio Indígena. Bem como prestar solidariedade ao Conselho Missionário Indigenista (Cimi), alvo de uma CPI na Assembleia Legislativa daquele Estado. Esta missão foi evangelizadora e política ao mesmo tempo.
No entanto, o sentido da missão não era legislar em causa própria, mas, sim, chamar a atenção para o genocídio de um povo. O que nos orientou foi a nossa fé e a convicção de amor ao próximo. Ao final da missão, lançamos o boicote ao consumo de produtos oriundos do agronegócio e produzidos no Mato Grosso do Sul. Vê-se ali uma ação ética, pois o lucro e os interesses de um grupo econômico não podem estar acima do direito à existência de um povo. Esse tipo de participação política é positivo. As incidências realizadas para a superação da intolerância religiosa são outro exemplo de participação política da religião.
Adital – Por qual motivo tentam ampliar a intervenção das igrejas no Poder Judiciário e por que isto acontece no país?
Dom Flávio – É difícil responder esta pergunta. Por que isso acontece em um país cujo Estado se declara laico? Não arriscaria identificar motivos, no entanto, arriscaria perguntar se a ampliação da participação das igrejas no Judiciário não seria nociva às próprias Igrejas. Talvez, devêssemos refletir sobre qual a nossa função na sociedade. Intervir no Judiciário ou contribuir para a promoção de uma cultura de não violência, de diálogo, de respeito e acolhida ao diferente? Talvez, esteja ocorrendo um desvirtuamento da função da religião na sociedade. Será que nos cabe sermos normatizadores ou pacificadores?
Adital – A PEC contempla apenas instituições religiosas com representação nacional, deixando de fora outras religiões, consideradas por especialistas como minoritárias, como as de matriz africana. Isto não é reducionista e amplia os casos de intolerância religiosa, já que existem religiões de diferentes culturas no país?
Dom Flávio – Sim, é reducionista e amplia os casos de intolerância religiosa. Vejo que essa PEC tende a ser prejudicial às próprias organizações religiosas. Em primeiro lugar, contribui para fragilizar as iniciativas que temos de convívio ecumênico e inter-religioso.
Em segundo lugar, tende a fortalecer mais ainda o olhar negativo em relação a nós, que algumas organizações já têm. A atuação religiosa na política participativa está sendo negativa para as organizações religiosas, que querem promover um debate mais critico e dialogal com a sociedade. Está, como disse anteriormente, desvirtuando a nossa função social.
As pessoas acabam nos vendo apenas como organizações que militam em causa própria ou que querem normatizar suas vidas privadas. O olhar negativo das pessoas em relação às organizações religiosas aumenta sempre que esse tipo de proposta surge. Há, como disse, uma variedade de igrejas ou outras organizações religiosas muito sérias, no Brasil. Algumas são pequenas, muitas vezes, oriundas do protestantismo histórico. Fazem um trabalho com transparência, não querem privilégios de nenhum tipo.
Aliás, boa parte dos privilégios concedidos a algumas organizações religiosas, não é concedida a outras. É um sistema excludente. Vale para quem tem mais poder de lobby. Acabamos todos sendo avaliados negativamente. Não temos espaço para expressar que somos contra os privilégios.
Adital – Qual será o impacto nos direitos daqueles que não seguem os dogmas das igrejas? E quais as consequências para a democracia no país?
Dom Flávio – Serão negativas. Até porque as organizações que militam em favor da aprovação dessa PEC têm uma forte tendência a normatizar a vida privada das pessoas.
Creio que haverá um acirramento mais forte das intolerâncias. Não compreendo como uma PEC com esse conteúdo contribui para ampliação da democracia. Nesse momento, o que estamos precisando é da taxação das grandes fortunas, distribuição de riquezas, mudanças drásticas nas políticas de segurança pública, direito ao território para os povos tradicionais, ações concretas para a superação do racismo, um resgate do processo civilizatório. Os altos índices de violência contra a mulher mostram que nosso foco deveria ser outro. A PEC 99/11 não contribui para alterar esses cenários de violência. Como vês, existem pautas muito mais urgentes e necessárias.
Como disse, precisamos repensar a atuação religiosa na sociedade. O número de casos de violência praticada em nome da fé exige isto de nós.
Fonte: Adital
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