Na terça feira passada, 08 de dezembro, o papa Francisco abriu na Catedral de São Pedro, em Roma, a “porta santa”. Inaugurou, assim, o “Jubileu extraordinário da Misericórdia” que lembra os 50 anos do encerramento do Concílio Vaticano II e quer ajudar toda a Igreja a ver e a viver a realidade do mundo atual a partir de óculos novos que o papa insiste ser um olhar misericordioso. Já em novembro, em sua visita a África, o papa antecipou a abertura do jubileu. Ao abrir a porta da catedral de Bangui, capital da República Centro-africana, fez daquela Igreja da África a primeira a entrar no jubileu da misericórdia.
Ainda há muitas pessoas, mesmo dentro do clero e até da Cúria que não compreendem e não aceitam a proposta do papa. Há poucos dias, um dos seus auxiliares afirmou à imprensa que “até a misericórdia de Deus tem limites”, embora ele não tenha dito quais seriam esses limites que, provavelmente, são os dele mesmo e não de Deus. Entre funcionários da Cúria, dizem que o papa está sofrendo de “misericordite”, ou seja, uma mania de insistir unicamente na misericórdia. O que se pode responder é que Jesus sofria da mesma doença. Quer que seus discípulos se deixem contagiar por ela e a espalhem pelo mundo.
Na compreensão popular, misericórdia é atitude de quem tem pena do outro. Não é a compreensão mais profunda do termo. Para a fé cristã, misericórdia significa o amor solidário que compromete cada pessoa com os outros seres humanos e mesmo com a Terra e a natureza ferida pela desumanidade do sistema que domina o mundo. Santo Agostinho dizia que o termo “misericórdia”, em latim, pode ser compreendido como “miser cor dare”, ou seja, “dar o coração, ou a vida, a quem precisa”. É a atitude que Jesus elogia na parábola do samaritano que, ao passar pela estrada, vê uma pessoa ferida, vítima de salteadores. Ele a socorre, sem perguntar quem era, o que pensava ou a que raça e religião pertencia.
Na América Latina, desde 1968, os bispos católicos em Medellín definiram que a Igreja deveria se colocar como um serviço de libertação para toda a humanidade. E várias Igrejas evangélicas, em suas convenções e sínodos, têm assumido essa mesma postura. Em El Salvador, Ignácio Ellacuría, um dos mártires jesuítas, assassinados pelos mesmos que mataram Dom Romero, afirmava: “Hoje, não se trata mais de apenas uma ou outra pessoa ferida no caminho. São povos inteiros, crucificados. É preciso descê-los da cruz”. Isso significa concretamente pôr a serviço da justiça todas as nossas capacidades humanas, intelectuais, religiosas e relacionais. O papa tem razão quando insiste em que não se trata apenas de assumir atitudes e gestos de misericórdia. É necessário, como propõe Jon Sobriño, tomar a misericórdia como princípio e eixo norteador de toda a nossa vida, um modo de ser permanente. É o que Sobrino chama de “Princípio Misericórdia”.
Muita gente acha que isso pode ser um bom princípio religioso, mas nada tem a ver com o modo de viver os conflitos sociais e a crise política que atravessamos. De fato, o contrário do princípio misericórdia é a onda de ódio e violência que se tem visto no mundo. Nesses dias, um cartão de Natal publicado em jornais mostrava uma família norte-americana desejando seus votos de happy Christmas. Na foto, pais e filhos estão todos com armas nas mãos. No Brasil, muita gente entra na luta contra o governo sem ter minimamente em vista o que é melhor para o povo mais pobre. Nem sabem o que significa a integração latino-americana para a grande pátria “Nuestra América”, com a qual, já no século XIX, Simon Bolívar sonhou.
De acordo com a Bíblia a profecia é procurar permanentemente uma palavra de Deus para as situações que vivemos. Ela nos ensina a ser profundamente críticos frente a qualquer sistema desse mundo. No entanto, propõe que sejamos sempre capazes de despertar a esperança da libertação e de uma vida mais plena. Como Jesus em Belém, essa esperança nasce a partir dos mais pobres e une justiça e misericórdia como princípio de vida.
Marcelo Barros