Há quase vinte e oito anos, os povos indígenas obtiveram uma conquista inédita no Brasil: pela primeira vez, seus direitos originários foram reconhecidos na carta magna do país. Em dois artigos sucintos e valiosos, a Constituição Federal promulgada em 1988 lhes garantiu o direito a existirem conforme seus próprios modos de vida, a terem respeitada sua autodeterminação, sem a tutela do Estado que até então os considerava incapazes, e a terem demarcados seus territórios tradicionais.
Tais direitos originários encontram-se hoje sob o mais intenso ataque desde que foram reconhecidos. Em meio à violência e à ameaça de novos tempos sombrios, os povos indígenas resistem e, resistindo, nos ensinam. Seu futuro é o futuro de todos nós.
As frentes de agressão e os focos da omissão aos direitos dos povos indígenas no Brasil articulam-se nos diferentes poderes da República, com estratégias variadas, discursos ultrapassados e um único objetivo: liberar as terras tradicionais destes povos para a exploração capitalista.
No âmbito do Congresso Federal, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215 pretende passar do poder Executivo ao Legislativo a competência para demarcar terras tradicionais e, na prática, inviabilizar as demarcações e permitir a mercantilização das terras já demarcadas. O relatório aprovado em outubro último, por uma comissão especial dominada por parlamentares financiados pelas grandes empresas do agronegócio e da mineração, somou a este já desastroso projeto um dispositivo ainda mais perverso: é o chamado “marco temporal”, segundo o qual só poderiam ser demarcados os territórios que estivessem sob posse dos indígenas em 5 de outubro de 1988.
O absurdo desse argumento, utilizado também em três decisões recentes da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) que anularam demarcações de terras já homologadas, é desconsiderar e legitimar todas as violações sofridas pelos povos indígenas nos últimos séculos e intensificadas, sob a justificativa da “comunhão nacional”, pela Ditadura Civil-Militar estabelecida em 1964. Durante este regime, que violentava os povos ao mesmo que tempo os “tutelava” e os impedia de reivindicarem seus direitos, mais de oito mil indígenas foram mortos, conforme apurou a Comissão Nacional da Verdade (CNV).
Além da tentativa de desmonte de direitos constitucionalmente assegurados, a paralisação das demarcações pelo Poder Executivo, com a finalidade de atender aos interesses do agronegócio, das mineradoras e do próprio governo, acaba repercutindo no recrudescimento da criminalização e da violência contra os povos indígenas.
O ano de 2015 terminou marcado pelo assassinato de Vitor Kaingang, de apenas dois anos, no colo de sua mãe, em Imbituba (SC). Somente nos últimos meses, uma dezena de ataques utilizando armas de fogo e até mesmo agentes químicos foi registrada contra os indígenas Guarani e Kaiowá no estado do Mato Grosso do Sul, onde não se pode mais negar que assistimos a um processo de genocídio. Em abril de 2016, o cacique Babau Tupinambá e seu irmão Teity Tupinambá foram presos arbitrariamente no sul da Bahia, mesma região em que o povo Pataxó sofre com constante insegurança e violação de direitos humanos.
Enquanto isso, os Munduruku da Terra Indígena Sawré Muybu, no Pará, aguardam a publicação do relatório que deve garantir o reconhecimento e a delimitação de seu território tradicional, mas que está emperrada porque o governo federal pretende construir sobre ele a hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, uma das 43 planejadas somente para esta bacia hidrográfica.
Situações semelhantes repetem-se em outros estados e com outros povos, em maior e menor grau. Com a finalidade de criminalizar povos indígenas e seus aliados, foram criadas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) que são palcos das mais preconceituosas ações e afirmações. É o caso da CPI da Funai e do Incra, em andamento na Câmara dos Deputados, e da CPI criada na Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul com a finalidade de perseguir o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) em seu trabalho pastoral de apoio aos povos indígenas.
Num contexto tão desfavorável, mais importante do que eleger um dia arbitrário para celebrar o respeito à vida e à sabedoria indígena é reconhecer que os povos indígenas não são a imagem estática de um passado distante, como gostariam muitos: eles estão vivos, presentes, mesmo depois de 516 anos de violência colonial, e têm voz ativa.
Em sua pluralidade, estes povos nos ensinam a ver o mundo e a sociedade sob outra perspectiva, na qual o lucro não se sobrepõe à vida e o viver melhor (do que os outros) não é mais importante do que o Bem Viver, em harmonia e com respeito à diversidade da natureza e à totalidade da vida.
Como nos afirma o Papa Francisco, para os povos indígenas “(…) a terra não é um bem econômico, mas dom gratuito de Deus e dos antepassados que nela descansam, um espaço sagrado com o qual precisam interagir para manter a sua identidade e os seus valores. Eles, quando permanecem nos seus territórios, são quem melhor os cuida”.
Aqueles que acham que os indígenas não deveriam mais existir os apresentam como grupos “ultrapassados”, que seriam percalços ao suposto desenvolvimento da nação, compreendido sempre como num sentido único e linear.
Onde enxergam unicamente o passado, entretanto, é que pode estar nossa única esperança de futuro e dignidade. Quando o mundo colapsa frente aos excessos de um sistema baseado no lucro, na competição e na ideia impraticável de um crescimento infinito, temos o direito de aprender com estes povos outros parâmetros de vida – mas, para isso, temos a obrigação de garantir a eles o seu direito a existir, com terra, autonomia e liberdade, “para que todos tenham vida, e vida em abundância” (Jo 10,10).
Fonte: CIMI
Dom Roque Paloschi, presidente do Conselho Indigenista Missionário – Cimi, publicado originalmente no Uol Opinião
Foto: crianças Munduruku, por Frei Sebastião Robledo