Enquanto os povos viviam distantes um do outro, cada um com as suas crenças e costumes, a intolerância não se evidenciava. Isso teve início com a ruptura provocada na Igreja pelo surgimento do protestantismo. Então, pessoas de um mesmo vilarejo, bairro ou família se dividiam entre católicos e protestantes. O conflito se desencadeou e, inclusive, fez correr sangue.
A reforma luterana rompeu a unidade religiosa do Sacro Império Germânico e, por consequência, a unidade de toda a Europa Ocidental.
Foi preciso encontrar novos critérios para a paz. Não através da submissão forçada de uns por outros. E sim pela via do entendimento e do bom senso.
Em 1686, Pierre Bayle escreveu ser um absurdo querer forçar alguém a pensar de uma determinada maneira. No máximo se pode obrigá-lo a fingir. Como já havia assinalado santo Tomás de Aquino no século XIII, a consciência de cada pessoa é irredutivelmente livre. A ponto de poder inclusive recusar a ideia de Deus.
A obra de Bayle preparou o terreno para a liberdade de consciência. Três anos depois, em 1689, John Locke, filósofo inglês, publicou sua “Carta sobre a tolerância”, na qual defende que o Estado não deve interferir nas convicções religiosas, e sim assegurar a liberdade de crenças. Deu-se o início da laicização do Estado e da sociedade.
Entre os séculos XVII e o início do XVIII, muitas vozes se ergueram contra a intolerância, como Baruch Spinoza, Jonathan Swift, John Toland, John Locke e Shaftesbury. A eles se somaram Montesquieu, Voltaire, Diderot, Rousseau, D’Holbach, entre outros.
Em 1763, Voltaire lançou o “Tratado sobre a tolerância por ocasião da morte de Jean Calas”. Este comerciante de Toulouse era protestante. Seu filho, Marc-Antoine, de 20 anos, apareceu enforcado no sótão da casa. Como manifestara a vontade de aderir ao catolicismo, o pai foi acusado de matá-lo, condenado à morte e executado.
Voltaire ergueu a sua voz contra o fanatismo. Exigiu revisão do caso. Apurou-se que o rapaz sofria de depressão. O pai, declarado inocente, foi reabilitado quando já se estava morto.
Voltaire salientou que existe uma fraternal solidariedade entre os seres humanos. Todos se mobilizam quando há uma catástrofe – incêndio, alagamento, terremoto, furacão etc. Aliás, como há dias se comprovou após o terremoto no México e o massacre em Las Vegas, quando multidões se dispuseram a doar sangue e socorrer as vítimas. Por que a intolerância quando se trata de pensar ou crer de modo diferente?
A intolerância só é aplicável às ciências exatas. Inútil querer que a água ferva antes de atingir os 100 graus centígrados. Ou insistir que 2 + 2 são 5…
No campo científico, a tolerância só é aceitável em se tratando de hipóteses. Antes de se chegar ao dado científico há várias hipóteses até a comprovação empírica de que a molécula de água resulta da junção de dois átomos de hidrogênio com um de oxigênio.
Isso é impossível em se tratando de crenças religiosas. Jamais as diferentes religiões ou tendências confessionais chegarão a um acordo quanto às suas convicções de fé. Restam, portanto, duas alternativas: a guerra ou a tolerância. E o passado demonstra que a guerra é inútil, apenas deixa lastro de ódio e sangue.
Fora do âmbito das ciências, a tolerância é desejável. Se alguém acredita que todos procedemos, não da evolução dos símios, mas da união de Adão e Eva, isso é tolerável porque não faz mal a ninguém. Embora os criacionistas não logrem explicar como estamos aqui, neste planeta superpovoado, se Adão e Eva tiveram dois filhos homens, Caim e Abel. A menos que admitam o incesto com a mãe…
Nem sempre é fácil demarcar a fronteira entre o tolerável e o intolerável. Depende de cada cultura. Para muitos é inconcebível que, em pleno século XXI, uma sociedade exija por lei que a mulher seja submissa ao homem, como ocorre na Arábia Saudita. Ainda que um estrangeiro que mora naquele país seja tolerante frente a esse absurdo, não significa que esteja de acordo com tal violação dos direitos humanos.
Diante de opiniões e atitudes diferentes, como em recentes exposições artísticas no Brasil, o tolerante se alegra e celebra a diversidade; o intolerante se enche de ódio e apela à violência.
Frei Betto é escritor, autor do romance “Hotel Brasil – o mistério das cabeças degoladas” (Rocco), entre outros livros.