A pandemia causada pelo coronavírus trouxe consequências diversas ao mundo nas diferentes dinâmicas da vida. Estes impactos geraram crises, não somente no âmbito da saúde pública e na esfera econômica, mas também nos mais diversos aspectos subjetivos, interpessoais e sociais. A fragilidade física e emocional do ser humano nunca esteve tão explícita e desnudada, pelo menos, não em tempos recentes. Traumas e feridas invisíveis não faltam em nossa realidade. Ao mesmo tempo, diversas formas de solidariedade humana e de criatividade emergiram desse quadro.
As inquietações e receios em torno da pandemia suscitaram reações de variadas naturezas ao redor do mundo. Entre elas, destaca-se o reforço de diferentes formas de espiritualidades, religiosas ou não, para o enfrentamento das questões relativas à morte, à fragilidade física e emocional e ao isolamento social. Da mesma forma, em especial devido ao confinamento e às implicações econômicas decorrentes da pandemia, diferentes aspectos da convivência humana impactaram as relações sociais, coletivas e interpessoais, com resultados os mais diversos, ora evidenciando e acentuando as dificuldades de relacionamento humano e insensibilidade social, ora favorecendo ações solidárias e fomentando reflexões sobre novas possibilidades de compreensão e organização da vida.
Todos esses aspectos, complexos e desafiadores, mostram caminhos significativos para a vida em geral e para a vivência espiritual em particular. A diversidade das respostas religiosas ao quadro da pandemia não foi e nem tem sido pequena e abarcou, desde a presença de formas religiosas obscurantistas, negacionistas e ideológicas até outras que se caracterizam pelo diálogo com as ciências, pela sensibilidade humana frente ao sofrimento e pela maturidade na busca de posturas que ressaltem a responsabilidade social diante dos nefastos efeitos dessa situação.
É preciso olhar a pandemia que assolou o mundo no contexto das necropolíticas. Entre os vários aspectos negativos da situação tão difícil e dramática gerada pela pandemia, há aqueles que revelam possibilidades para a reorganização da sociedade, tanto em termos das vivências pessoais no cotidiano, quanto na estrutura social. O sociólogo português Boaventura de Souza Santos chamou estas possibilidades de A cruel pedagogia do vírus, título de um de seus recentes livros.
A pandemia revelou que o sistema econômico no qual a sociedade está estruturada, mesmo com as variações entre os países e continentes, não atende às demandas da dignidade humana e dos direitos básicos das pessoas. A situação no Brasil, mas também em várias outras partes do globo, mostrou que os riscos e os maiores problemas se concentram nos setores mais pobres da sociedade, e a realidade das populações carcerárias, de áreas favelizadas e de moradores de rua se tornou ainda mais dramática. As periferias, com suas habitações precárias, sem saneamento e congestionadas, são as que mais sofrem com o surto pandêmico. O vírus, a bactéria ou qualquer outro microrganismo responsável pelo surto não escolhem pessoas. Todos estão sujeitos ao contágio. No entanto, ele pode ser mais grave naquelas pessoas em estado de vulnerabilidade e que já possuem doenças crônicas. A sociedade brasileira, por exemplo, racializada e marcada por desigualdades, mostrou como a divisão racial, as formas de machismo e as disparidades econômicas foram exacerbadas pelo impacto devastador da pandemia, que ampliou e intensificou o genocídio de negros e indígenas brasileiros.
A necropolítica, com o seu fundo ideológico e a sua origem colonial, permeia a vida social. A organização do espaço urbano, por exemplo, gera “não-lugares”, onde a lei não possui validade, a morte é banalizada e inexiste justiça e responsabilização por assassinatos e mortes. O quadro da pandemia tornou essa realidade ainda mais evidente. Nos grandes centros urbanos, os níveis de contaminação e o grau de mortalidade e de pessoas que não podem adotar o distanciamento social, em especial pelas condições de trabalho e de transporte, refletem essa divisão do espaço.
O conceito de necropolítica pode se relacionar à lógica sacrificial que emerge no contexto da pandemia, sobretudo devido a alguns de seus elementos estruturantes como a criação ficcional de um inimigo (o comunismo da China, por exemplo), o reforço de laços de inimizades e a noção do estado de exceção. Trata-se da dimensão religiosa da necropolítica. Em tempos de pandemia, ela tem revelado a sua face racista e antidemocrática, permitindo perceber no sacrifício expiatório uma face da necrorreligião.
Boa parte das reflexões tem realçado as consequências da pandemia, embora se reconheça que uma visão aprofundada sobre as causas seja de grande importância para a sensibilização na direção de outras formas de visão político-social, de cultura e de espiritualidade. Elas poderiam reforçar a sustentabilidade da vida e do mundo e indicar a necessária crítica ao sistema econômico atual e a forma excludente como a sociedade está organizada. Não é desprezível o fato de que houve no período inicial do isolamento social (nos meses de março a julho de 2020) sinais de diminuição da poluição nas grandes cidades e a redução do consumo desenfreado. A expressão utilizada pelo teólogo brasileiro Leonardo Boff no título de um de seus artigos é exemplar desta realidade: Voltar à “normalidade” é auto-condenar-se.
Esta realidade se aplica sobretudo às mulheres. A situação de isolamento social transferiu atividades de trabalho profissional para o ambiente da casa e acarretou situações problemáticas que fazem com que muitas mulheres (também as crianças) sejam obrigadas a conviver com homens agressores. A restrição de deslocamento traz para as mulheres a impossibilidade de visitar ou buscar refúgio em suas redes mais próximas – sejam familiares ou de amizades – e ficam expostas às mais diversas formas de violência.
Portanto, a situação é de grave crise global e planetária, perpassando várias dimensões da concretude da vida e do cotidiano.
Nesta direção, precisamos de uma nova articulação político-social que deva ter como pressuposto uma viragem epistemológica, cultural e ideológica. Ela precisaria forjar soluções políticas, econômicas e sociais que garantissem a manutenção da vida humana digna para todas as pessoas no planeta. Tal mudança possui múltiplas implicações. Uma delas, de caráter urgente e planetário, seria a criação de um novo senso comum e crítico de que, especialmente nas últimas décadas, se vive uma “quarentena” política e cultural, de forte acento ideológico, forjada pelo sistema capitalista em suas engrenagens excludentes e suas estruturas discriminatórias no tocante às situações raciais e sexuais nas quais ele subsiste. Nas palavras de Boaventura Santos: “A quarentena provocada pela pandemia é afinal uma quarentena dentro de outra quarentena. Superaremos a quarentena do capitalismo quando formos capazes de imaginar o planeta como a nossa casa comum e a Natureza como a nossa mãe originária a quem devemos amor e respeito”.
No tocante às relações interpessoais, questões relacionadas aos contextos familiares e aspectos do cotidiano, a dimensão de crise também possui um aspecto positivo. No plano da solidariedade humana, a dor comum parece, ao menos em parte, acordar as sensibilidades e o espírito de solidariedade, não obstante à frieza de alguns grupos, especialmente porque, por mais que algumas pessoas e grupos sejam mais protegidos do que outros, a situação atual revela a vulnerabilidade de todos. A crise, portanto, parece se revelar como auxílio para um despertar de nossa solidariedade com nossos vizinhos idosos, com as pessoas mais vulneráveis da sociedade, com os doentes que estão nos hospitais. As ruas e as praças da cidade de São Paulo, no Brasil, conhecem, por exemplo, o desprendimento do padre Julio Lancelotti e equipe no trabalho com populações que vivem nas ruas. A saúde neste projeto é compreendida de forma holística, integral, que vai do atendimento em situações de fome e saúde à defesa dos elementos básicos dos direitos humanos para esse grupo. Na crise da pandemia, todo este esforço precisou ser multiplicado.
Ao ser definida como crise global, a pandemia do novo coronavírus, mais do que em outras situações sociais dramáticas, revela a crise do sistema econômico que emoldura a gravidade sanitária e mostra mais nitidamente os sinais das necropolíticas estabelecidas em várias partes do mundo. Tal quadro exige novas sensibilidades, outra política global e o enfrentamento das gestões locais e nacionais, tendo como princípio o valor supremo da vida.
Olhemos com maior atenção a relação entre a pandemia e as vivências religiosas. No contexto social e cultural da pandemia, muitos temas e argumentos religiosos se destacaram nas conversas e debates, seja pelo clima de obscurantismo estimulado por alguns grupos, seja pela busca de compreensões mais amplas e bem fundamentadas de um fenômeno que é social. Como entender mais adequadamente esse quadro é uma pergunta que vários grupos têm feito e diferentes setores têm se dedicado em refletir sobre ela.
Tanto as formas mais espontâneas de espiritualidade, quanto as expressões religiosas mais tradicionais ou institucionalizadas estão presentes no debate acerca da pandemia e do isolamento social. Ambas têm marcado a vida de muitas pessoas e grupos e têm estado presentes, de diferentes maneiras, em cada situação enfrentada.
As formas e características dessas espiritualidades e vivências religiosas são muito diferenciadas. Um primeiro conjunto delas, com muitas variações e nuances, é articulado por elementos ideológicos. Ele também é atravessado por leituras econômicas, quase sempre como “chave fundamental de solução e, muitas vezes, como critério principal para decidir sobre as estratégias de contenção do contágio. E não faltou quem tenha afirmado de modo explícito ou disfarçado que a salvação da economia era mais importante do que a preservação das vidas”.
Este primeiro conjunto de visões religiosas possui, ao menos, quatro vigorosas expressões, boa parte delas com forte apego popular e estão presentes no contexto católico latino-americano. Uma de suas expressões se caracteriza, seguindo visões emergentes na sociedade no campo político, pela negação da dramaticidade da pandemia. Nesta perspectiva, torna-se nítida a relação com o relativismo da verdade presente em discursos políticos sobre a pandemia e, mais ainda, mostra os desafios para a compreensão da vida cristã, em coerência com a verdade evangélica.
Outra expressão atribui a disseminação da doença à ira e ao castigo de Deus pelos pecados humanos, especialmente os associados à liberdade sexual e ao uso do humor ou relativização dos valores religiosos tradicionais. Nesta visão, a pandemia e seus respectivos impactos sanitários e econômicos significam uma ação de Deus para castigar a humanidade, que teria perdido o seu rumo moral. Diversos padres católicos e pastores evangélicos, sobretudo os que tem certa presença nas mídias, divulgaram esta visão.
Outra expressão, também relacionada às ideologias obscurantistas, atribui a pandemia à supostos interesses comunistas para afrontar a fé cristã. Trata-se de uma visão que possui a necessidade de se apontar inimigos, reais ou imaginários, que ameaçam a fé, algo sempre presente nas interpretações religiosas de caráter mais fundamentalista. Apontar inimigos de forma constante se faz necessário para a sustentação e manutenção dos discursos violentos, dos sentimentos de rivalidade e mesmo de exclusividade da fé e da razão. Neste tempo de pandemia provocada pela COVID-19, um dos inimigos escolhidos por parcela dos grupos religiosos são os protagonistas das pautas que são identificadas como pertencentes à esquerda política.
Outra expressão deste conjunto de visões religiosas destaca, no contexto da pandemia, o elemento religioso em contraposição ao científico. Em linhas gerais, tais leituras religiosas persistem paralelas às ciências, e, algumas vezes, ocupam o lugar delas. São grupos que “colocam como causa do vírus Deus ou o diabo e, por conseguinte, oferecem rituais de solução: cultos, unção com óleo, novenas, correntes de oração, crucifixo na porta, água benta aspergida na rua, procissão com o Santíssimo Sacramento”.
Há um segundo conjunto de abordagens e formas de espiritualidade de caráter mais intimista que destaca a importância da vida devocional, das orações e da meditação como caminho de equilíbrio interior, considerando que os tempos atuais são de incertezas e inseguranças. Elas não são necessariamente anticientíficas, mas não possuem a abrangência crítica que o momento e as circunstâncias da pandemia exigem. As mídias seculares divulgaram intensamente essas expressões de espiritualidade. Estas abordagens religiosas são marcadas pela busca de superação (ou em alguns casos, fuga) dos próprios limites e angústias e nem sempre destacam as dimensões religiosas mais críticas para o enfrentamento das situações de crise. Nesse sentido, é preciso estar atentos aos limites das espiritualidades fortemente intimistas.
Há um terceiro conjunto de expressões de espiritualidade cujas interpretações de fé são mais consistentes e também estão presentes em diferentes grupos nas igrejas cristãs e em diferentes religiões. Elas estão conectadas com os aspectos sociopolíticos evidenciados nesta crise social revelada pela pandemia e ancoradas nos princípios da solidariedade, da comunhão e da responsabilidade com os destinos da vida e do mundo.
Esta visão tem tido ampla fundamentação teológica. Maria Clara Bingemer realça que falar de Deus neste contexto da pandemia gerada pelo coronavírus requer, de forma mais intensa e responsável, um diálogo com a ciência e deixar-lhe plena autonomia no campo e competência que lhe são próprios. “Isso requer não misturar epistemologias nem tratar o que diz respeito ao campo biológico com instrumentos falsamente espirituais, que matam em vez de curar e alimentam políticas genocidas capazes de empurrar as pessoas para o contágio e, provavelmente, para a morte”.
Magali Cunha, jornalista brasileira e destacada liderança do movimento ecumênico, ao analisar as causas da pandemia, refuta as interpretações religiosas sobrenaturalistas para evidenciar a importância da fé articulada com a consciência social e humana. A autora faz a crítica à sociedade de mercado que está baseada na necessidade capitalista de um crescimento do lucro sem fim. Ela mostra que foi esta lógica que levou empresas e empreendedores a se confrontarem com a vida selvagem na busca do lucro, forçando animais a entrarem no habitat remanescente em declínio ou no próprio mercado. “O que estamos vivendo não é, portanto, uma obra sobrenatural de Satanás ou castigo de Deus, como alguns religiosos querem fazer crer, mas uma ação maligna (por que não dizer: satânica?) dos nossos iguais que promovem domínio em vez de cuidado, exploração em vez de preservação”. A autora destaca ainda que este tempo precisa ser de oportunidade, de redenção e de esperança para “se pensar um mundo ecológico e justo organizado em torno do cuidado, não centrado nos humanos, mas que busque a harmonia de todos os seres que habitam a mesma Terra, casa comum”.
Esta visão é a que possibilita várias iniciativas no campo do cuidado com a saúde. Entre os grupos católicos, é belíssimo o testemunho da equipe franciscana, liderada pelo frei Diego Atalino de Melo, que tanto na cidade do Rio de Janeiro quanto em São Paulo, cuidam da saúde das pessoas que vivem nas ruas. Esta visão franciscana compreende que cuidar da saúde inclui a luta por moradia, alimentação, trabalho e outras condições básicas da vida, que lhe são negadas. Grupos como estes são diversos em todo o país, católicos e protestantes, outros seculares, boa parte deles liderada por mulheres, e representam concretamente a fé bíblica.
Por fim, quero apenas realçar que a pandemia causada pelo coronavírus evidenciou a crise e as injustiças do sistema econômico no qual a sociedade está estruturada e o desgaste dos processos vitais e da natureza ocasionado pelas ações humanas destrutivas e firmadas no lucro. Como visto em nossa análise, as pessoas pobres e os agrupamentos que vivem em situações de vulnerabilidade são as principais vítimas da crise sanitária instalada e a situação dramática destes grupos, resultante das necropolíticas estabelecidas em sintonia com o sistema econômico, pautam (ou devem pautar!) os desafios para uma civilização firmada pelos direitos e na justiça.
Neste contexto, as vivências religiosas, incluindo as dos grupos católicos, têm realçado a presença simultânea de formas obscurantistas e negacionistas, por um lado, e de outras que, ao contrário, se caracterizam pelo diálogo com as ciências, pela maturidade da responsabilidade social e pela sensibilidade humana. Este último conjunto de vivências religiosas tem mostrado que há uma movimentação na sociedade de grupos sensíveis aos aspectos da fragilidade humana e abertos às tarefas de enfrentá-los. Tais experiências têm sido marcadas por expressões espontâneas, criativas e plurais de espiritualidade que, por seu modo, favorecem perspectivas de esperança.
Claudio de Oliveira Ribeiro é pastor metodista, professor de Ciência da Religião da UFJF e vice-presidente do Conselho Superior do CESEEP.
Referências
Bingemer, Maria Clara Luchetti. “Deus em meio a pandemia”. In A pandemia do coronavírus: onde estivemos? Para onde vamos?, organizado por João Décio Passos, 197-221. São Paulo: Paulinas, 2020.
Boff, Leonardo. “Voltar à ‘normalidade’ é auto-condenar-se”. Brasil de Fato, Rio de Janeiro, 4 maio 2020b. Disponível em: <https://www.brasildefatorj.com.br/2020/05/04/artigo-voltar-a-normalidade-e-auto-condenar-se-por-leonardo-boff>. Acesso em: 28 ago. 2020.
Cunha, Magali do Nascimento. “Nem ‘obra de Satanás’ nem ‘castigo de Deus’: a pandemia é oportunidade”. CartaCapital, São Paulo, 18 mar. 2020. Disponível em <https://www.cartacapital.com.br/blogs/nem-obra-de-satanas-nem-castigo-de-deus-a-pandemia-e-oportunidade/>. Acesso em: 28 ago. 2020.
Santos, Boaventura de Souza. A cruel pedagogia do vírus. São Paulo: Boitempo, 2020.