Antonio Cecchin, como Dom Paulo, é daquela estirpe de pessoas cujo luto extrapola o circulo familiar e como ondas de um lago acaba alcançando você.
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O meu primeiro encontro com o Antonio Cecchin ocorreu por volta dos meus 15, 16 anos, entre 1964 e 1965; no Colégio Champagnat . Eu era membro da JEC – Juventude Estudantil Católica e o nosso caderno tinha o título de”Justiça Social”. Era um dia de verão, ensolarado e quente de Porto Alegre.
Depois deste primeiro encontro seguiram-se centenas de outros; em alguns momentos eles foram quase que diários.
Eram os tempos em que a serpente já se desfizera dos disfarces do terço e do manto azul e não temia mais mostrar a sua verdadeira pele, a sua verdadeira cor, e principalmente, a que viera.
Porém, estes tempos sombrios não intimidaram Antonio de criar as Fichas Catequéticas, o instrumento para promover uma nova catequese, uma catequese libertadora. E foi neste tempo que num dia, enquanto eu montava as Fichas e ele grampeava os jogos, que disse – “sabe Beto, está na Bíblia: o nosso Deus sempre esteve e sempre estará ao lado do seu povo, porém todas as vezes que este povo, o povo escolhido por Ele oprimir outro povo, este povo experimentará a sua ira, e olhe que Ele não é vingativo, Ele é justo! ”
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Mais a frente, já em 1969, acreditando em outros caminhos para mudar a nossa realidade, deixei Porto Alegre e fui para São Paulo e depois para o Rio de Janeiro, onde em maio de 1970 fui preso e assim fiquei até novembro de 1977. Em Porto Alegre Antonio foi preso duas vezes, em 1968 e 1972.
Arrisco dizer que devemos ter feito descobertas certamente comuns, porque comuns foram as nossas experiências, as mesmas que muitos passaram mas que, como Cristo, não lhes permitiram que delas saíssem vivos.
No que me toca, digo que foi um duro teste para as minhas certezas, pois afinal, que humanidade é esta que não hesita de forma deliberada submeter o seu semelhante à dor e à humilhação prolongadas?
Sempre comparo aos animais, que matam para se defender ou alimentar e deles não se tem qualquer relato que sobre o animal abatido, com a pele rasgada, o vencedor descanse a sua pata sobre as suas feridas somente para vê-lo sofrer, definhar, implorar por uma morte mais rápida.
Foram horas em que me perguntei: onde estás meu Deus? Em que e por que ter esperanças?
Já em liberdade condicional, depois de sete anos e meio, reencontro Antonio, Antonio e Matilde, sim porque sempre foi assim, Antonio e Matilde juntos, o mesmo compromisso, a mesma coragem, não há como separá-los; então, e hoje sei, que foram a organização dos mais pobres e as Comunidades Eclesiais de Base que curaram as seqüelas da sua prisão. E disto extraio que ao conhecimento, à firmeza dos valores é preciso associar o anúncio da palavra e a persistência do fazer. Antonio mostra-me em que e porque ter esperanças novamente.
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Em março de 2013 assisto Leonardo Boff sendo entrevistado na TV sobre o Papa Francisco. Ao final do programa, enredado entre o desconhecimento e a hesitação em acreditar no que fora destacado nas respostas – a simplicidade de Francisco contraposta ao Principesco de Bento, a minha saída foi imediatamente ligar para o Antonio e perguntar-lhe: “Antonio, como é possível dizer das diferenças entre Francisco e Bento só com base em sinais exteriores?” Sua resposta foi: “Beto, é verdade, o Papa Francisco, junto com outros bispos à época do Vaticano II, em novembro de 1965, assinou o Pacto das Catacumbas, mas me aguarde que vou enviar alguma coisa para você!” Pensei: “será que veremos o fim deste triunfalismo que já dura mais que a Ditadura!”
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Está fora da seqüência temporal deste relato, mas não posso deixar de destacar o que foi quase um mantra do Antônio ao abrir ou concluir alguma consideração – “Beto, não há salvação individual, ou nos salvamos com e como pobres ou não nos salvamos, e isto vale tanto para a hora da missa como na hora de fazer a revolução”. E ele foi isto, ele foi pobre na vida e nos votos, foi morador de rua, foi catador de lixo, foi índio, foi negro, foi camponês, foi ribeirinho, foi educador, foi rebelde, foi pensador, foi um defensor da diversidade, da tolerância e da empatia, exceto com os soberbos e poderosos.
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Amigo Antonio, você agora está com Dom Paulo, Dom Helder, Frei Tito, Padre João Bosco Burnier, Padre Antonio Henrique, Irmã Dorothy Stang, Sepé Tiaraju, Zumbi, Santo Dias e tantos outros que experimentaram o orgulho, como disse alguém recentemente, o orgulho de ter lutado ao lado dos derrotados. Mas permita-me dizer-lhe que eu vou sentir, nós vamos sentir muito a sua falta, principalmente porque de novo estamos em meio às trevas, que estimulam a violência contra as mulheres, os mais pobres, os moradores de rua, os sem teto e sem terra, os homossexuais, os índios, os estudantes, os trabalhadores, os intelectuais e artistas, contra os políticos representantes do povo; enfim, um quadro de completa exclusão e espoliação que se pretende justificar pelo martelar diário de mensagens que não objetivam outra coisa senão quebrar a nossa resistência e nos fazer aceitar qualquer medida, mesmo aquelas que vem em nosso próprio prejuízo.
Mas, Antonio, por favor, permita-me antecipar um esclarecimento: quando reclamo a sua ausência, não estou dizendo que nada se pode fazer sem você, somente estou querendo destacar que certamente com você ficaria mais fácil resgatar a empatia e a partir dela promover ações transformadoras, as ações que salvem a nossa humanidade, os seres vivos, a natureza enfim, e isto sobretudo agora, quando uns cortam as cabeças de outros.
Antônio, depois de uma vida de construção, de lutar por um rumo para a nossa humanidade, sinceramente fico dividido, porque não sei se você deveria ver tudo isto que acontece hoje em nosso país e ainda ter que diariamente saber de julgamentos por causa de um dinheiro que dizem deveria ser nosso, mas sem nunca julgar quem ou de onde veio o dinheiro que pôs fim à vida de muitos Antônios, iguais a você, ainda que com outras motivações, pensamento e ações, porém iguais nos objetivos e nos sonhos.
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Antônio, fiquei profundamente triste quando a Matilde nos disse que você já não estava mais entre nós e agora quero repetir o que ouvi de uma pessoa amiga e muito querida – “é muito triste saber da partida de um amigo, mas é muito mais triste ainda não ter podido dizer antes o quanto gostávamos dele”.
Amigo Antonio, um beijo meu e da Laura.
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Texto elaborado por Alberto Henrique Becker e Laura Petit da Silva, e lido em 09/01/2017, no Teatro da PUC-SP, quando da homenagem in memoriam de Antonio Cecchin, falecido em 16 de novembro de 2016, em Porto Alegre.