No terceiro dia da 36ª edição do Curso de Verão, promovido pelo CESEEP (Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular), os educadores, Eunice Dias de Paula e Luiz Gouvêa de Paula, discorreram sobre o tema “Educação indígena (bilingue): desafios para uma cultura integrada à natureza – os Apyãwa (povo Tapirapé) e suas escolas”.
Em fevereiro de 1973, o casal que na época era recém-casado e vivia em Campinas, município do estado de São Paulo, aceitou o convite de Dom Pedro Casaldáliga, o então Bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, no Estado do Mato Grosso, para assumir o segmento de educação na aldeia indígena dos Apyãwa (povo Tapirapé), na região da Serra Urubu Branco, no município de Confresa (MT).
“Neste ano fará 50 anos de nossa chegada. Eu, Luiz e o nosso filho André, com apenas dois meses de idade. Lá temos família que nos adotaram e da qual não conseguimos ficar distantes. Estamos sempre em contato com eles e quando conseguimos, sempre voltamos lá”, contou Eunice.
O casal abriu a assessoria da noite de sábado, dia 7, compartilhando detalhes do convite de Dom Pedro, que havia construído na época um ginásio, que segundo Eunice, foi a sua primeira obra na região.
“Quando ele chegou lá com os companheiros, viu a situação precária existente, em todos os sentidos, sobretudo na educação. Por isso decidiu, junto aos colegas, construir esse ginásio para reduzir o analfabetismo e, assim, convidou jovens para dar aulas”, narrou Eunice.
Ela lembrou ainda que a demanda de educação escolar na aldeia surgiu de uma vontade dos próprios indígenas. “Os Tapirapés sentiram a necessidade de entender e compreender os conceitos e a língua portuguesa para lidar com a FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), por estarem empenhados na luta por suas terras”, disse.
A educação indígena dos Apyãwa
O casal seguiu a assessoria, detalhando como foi o desenvolvimento do trabalho educacional na aldeia coordenado por eles por aproximadamente 15 anos.
Luiz iniciou a abordagem do tema reforçando que a educação indígena é um sistema ligado à vida, que de fato está voltada à natureza.
“Isso é uma verdade, pois os povos indígenas não fazem diferença dos seres vivos. Todos já devem ter escutado indígenas dizendo ‘somos a natureza, a terra e água’. O conhecimento não-indígena entra como conhecimento integrado a essa educação”, disse Luiz.
Cientes disso e dos processos distintos dos povos indígenas, incluindo as diferentes maneiras de enxergar e pensar o mundo, para trabalhar a educação escolar indígena os educadores tiveram que refletir desde o início como seria desenvolvido esse trabalho.
Eunice frisou que os princípios pedagógicos de Paulo Freire sustentaram o trabalho desenvolvido por eles na aldeia. “A questão de que os educandos são sujeitos dos seus próprios processos de aprendizagem”, pontuou Eunice.
“Então não íamos lá para ser os professores, que sabiam tudo. Mas sim, considerando-os com os seus saberes e conhecimentos”, acrescentou Eunice, lembrando que na década de 1970, os primeiros alunos eram adultos com idades entre 40 e 50 anos.
E assim, a partir dos princípios freirianos, os educadores trabalharam com palavras geradoras incentivando o levantamento do universo vocabular dos alunos indígenas.
Os educadores contaram ainda que, paralelamente nesse processo, eles se tornaram aprendizes da língua dos Apyãwa. “O método Paulo Freire também permitiu que nós aprendêssemos o mínimo. Para vermos a explosão que é o método freiriano”, comentou Luiz.
E assim, a escrita foi introduzida na sociedade Apyãwa. Que primeiro aprendeu a própria língua e depois o português, por meio dos princípios freirianos que continuam presentes até hoje na escola indígena, que continua trabalhando a partir do contexto sócio-histórico, dos conhecimentos tradicionais e por atitudes de pesquisas.
Desafios
Para os educadores, um dos desafios que assombra a educação indígena até hoje é a opressão que a sociedade exerce sobre os povos indígenas.
“Eles estão vivendo com cidades muito próximas que acabam tendo muitas interferências sobre eles. Interferências que transparecem também na língua, pois começam a entrar muitos vocábulos do português”, apontou Eunice.
Realidade que gerou na aldeia dos Apyãwa uma política de resistência linguística. “Eles começaram a criar vocábulos para todas as coisas do português que estavam entrando na língua”, contou a educadora.
Ainda segundo Eunice, foi realizado um seminário para discutir a situação. “Criaram 300 vocábulos novos para nomear essas coisas que vem do mundo não-indígena”, expôs Eunice. “É um trabalho de resistência linguística bastante forte entre eles para manter a língua viva”.
Outro desafio apontado por Eunice é que, embora exista um conjunto amplo de leis que favorecem a educação escolar indígena, a execução delas ainda deixa a desejar. “Elas não são respeitadas pelo estado, pelas secretarias estaduais e municipais”, afirmou.
Para Eunice, um exemplo claro de opressão e de não cumprimento das leis é o calendário escolar. “O estado define um calendário para todas as escolas estaduais e as escolas indígenas têm que seguir o mesmo calendário. Isso é uma opressão do nosso mundo que continua sobre eles”, apontou.
A educadora destacou também o fato de a sala de aula ser limitada a um espaço de quatro paredes. Para ela, isso se trata de uma homogeneização, uma burocracia que também oprime.
“Se queremos interligar a educação indígena com a educação escolar indígena, isso não pode acontecer. A educação não se faz só entre as quatro paredes da sala de aula. Se tem um ritual, os alunos vão para ele. Isso também é formativo. São momentos formativos que as crianças precisam”, enfatizou Eunice.
Luiz acrescentou também um desafio atual enfrentado pelos professores da educação indígena no Mato Grosso. Trata-se do uso de um sistema via internet por onde o estado acompanha as escolas, como os diários e a vida escolar dos alunos.
“Entendo que seja necessário um sistema eletrônico também para as aldeias. Mas esse sistema deveria ser apropriado à educação escolar indígena. Isso é mais um instrumento de dominação do estado sobre a educação escolar indígena”, opinou Luiz.
Os educadores lembraram ainda que apesar dos desafios, as escolas indígenas foram construídas a muitas mãos, inclusive, pelo próprio povo Apyãwa.
“Só podemos agradecer esse povo Apyãwa. Nossa vida profissional foi na aldeia. Fomos aprendizes com eles”, disse Luiz.
“Agradecemos imensamente a todos. Sem essa rede de apoio não teríamos conseguido. Os Apyãwa não estariam onde estão”, finalizou Eunice.
Para saber mais dessa experiência, adquira o livro do 36º Curso de Verão (https://cursodeverao.ceseep.org.br/publicacoes-dos-cursos-de-verao/) em que os educadores assinam um dos textos da obra.
Ira Romão
Equipe de Comunicação