Neste domingo, 29 de junho de 2025, fui convidada pela primeira vez na minha vida a pregar numa igreja evangélica, na Igreja Batista do Caminho no Rio de Janeiro. Fiquei muito emocionada, não só porque essa igreja é muito querida para mim, mas também porque quando eu vou lá eu sempre lembro que Cris Serra foi várias vezes, e acho que foi a primeira pessoa católica que eu vi pregando em igreja evangélica. Cris foi muito marcante na minha história para conseguir sair do armário na Igreja Católica e não ter medo de afirmar que eu sou bissexual e católica. Nesse movimento de sair do armário, guiada pela Ruah, enquanto eu estudava Teologia na PUC-Rio, eu fui saindo e indo ao encontro de muita gente querida de outras denominações cristãs, de outras religiões, de outras espiritualidades. Refletir hoje sobre celebrar a diversidade do amor em meio às adversidades da vida é algo que passa por toda essa experiência de vida transpassada pela diversidade de crenças e afetos.
Poder viver hoje ocupando espaços na academia, nas igrejas, na sociedade, sendo abertamente assim como eu sou, é algo que só é possível graças às pessoas que vieram antes de mim e foram abrindo esses caminhos cheio de luta, suor, sangue e glitter. Agradeço a Deus pelas nossas ancestralidades que se fazem presentes através do dom das nossas vidas, agradeço a Deus pelas pessoas que lutaram pela justiça em todas as suas dimensões, especialmente quem perdeu sua vida por isso, como a Marielle Franco que também era bissexual e católica. Agradeço a Deus por quem continua abrindo caminhos em meio ao caos desses tempos que vivemos, pessoas companheiras de caminhada e de luta que são referência pra mim e pra tanta gente, como Ana Ester, Andrea Musskopf, Angélica Tostes, Murilo Araújo, Giovanna Sarto, também as pessoas queridas da Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT+, e tantas outras pessoas queridas no Brasil e na América Latina e Caribenha que eu tenho tido o gozo de conhecer nesses últimos anos.
Mas confesso que, apesar da beleza desses caminhos que foram abertos e vão se abrindo, eu ando muito triste, com raiva, dolorida. É muito difícil viver nesse momento de tantas dores, lutas, injustiças que são denunciadas a tanto tempo, mas parece que quase nada mudou. Eu sinto que quanto mais eu mergulho no dom da diversidade criada e querida por Deus, mais vou percebendo todas as violências e estruturas de injustiça que ferem esse dom da diversidade. Você também sente isso? Que quanto mais a gente se aprofunda no amor de Deus, quanto mais a gente se aprofunda nas diversidades da expressão do amor de Deus, mais a gente enxerga tudo que não condiz com esse amor. São tantas violências e injustiças acontecendo o tempo todo, tanto aquelas que são mais silenciosas e veladas, quanto as que são… não consigo nem achar a palavra, porque dói.
Dia 28 de junho é o Dia Internacional do Orgulho LGBT+ e, como sempre, foram vários os posts nas redes sociais, só que nesse mês mais do que outros anos, conforme eu fui vendo os feeds e stories logo aparecia também genocídio na Palestina, notícias sobre o IOF, ainda repercussões da PL da devastação e do leilão do petróleo, as incoerências rumo à COP30, notícias sobre a Juliana Marins e os comentários odiosos por todos os lados… É de adoecer essas coisas. Ver escancarado o tempo todo as violências e estruturas de injustiça. Como celebrar a vida e o amor em meio às adversidades?
Aí eu lembrei que nesse mesmo mês tão carregado celebramos Pentecostes. Não é sempre que Pentecostes cai em junho. A data do orgulho LGBTQIAPN+ é dia 28 de junho por conta da revolta de Stonewall. Talvez vocês já conheçam a história, mas eu gostaria de compartilhar aqui essa história através do relato “Pentecostes de Stonewall”, escrito por um membro do MOPA – Movimento Pastoral LGBT “Marielle Franco” da Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT+
Proclamação da Palavra do Amor segundo Edilson Cruz
Quando chegou a noite de 28 de junho de 1969, estavam todos reunidos no mesmo lugar: o bar Stonewall Inn, no bairro de Greenwich Village, Nova York. De repente, veio de fora um forte estrondo, como se fosse uma ventania, que logo encheu o lugar onde eles se encontravam: era mais uma batida policial, como de costume.
No entanto, nesse momento, acenderam-se como que línguas de fogo na mente e no coração das pessoas reunidas no Stonewall e todas foram tomadas por uma sagrada indignação, que se manifestou em cada uma delas.
Todas, todos e todes ficaram cheios de um desejo de liberdade e começaram a falar, gritar palavras de ordem, cantar canções de protesto, como “We shall overcome” (Venceremos), e a insurgir-se contra a repressão policial.
Todos, portanto, falavam a mesma língua. Moravam e se divertiam naquele bairro de Nova York pessoas das mais diversas origens, identidades de gênero e orientação sexual. Quando ouviram o barulho, juntou-se a multidão e todos ficaram, a princípio, confusos, pois cada um entendia em sua própria carne aquele ímpeto de liberdade que tomava a todos.
Cheios de espanto e admiração, diziam, com seus gestos, cantos, corpos e mentes: “Essas pessoas que estão protestando não são todas vítimas de silenciamento e repressão? Como é que nós os entendemos em nossa própria carne e realidade? Nós que somos gays, lésbicas e bissexuais; travestis, transexuais e transgêneros; queers, não-binários e assexuais; intersexo e até heterossexuais.
Somos da cidade, da periferia, do campo; negros, brancos e amarelos; gente da Ásia, da África e das Américas, da Europa e da Oceania, também norte-americanos que aqui residem; crentes e ateus, jovens e
velhos. Todos nós os entendemos em sua paz inquieta e expressiva, anunciar a liberdade, resistir e inaugurar um novo tempo.”
Palavra do Amor, Glória a Vós Amor!
Orgulho não é sinônimo de egocentrismo nem de soberba, isso é falácia da branquitude eurocêntrica cristianizada catolicizada que já logo categoriza como um dos pecados capitais. O orgulho LGBTQIAPN+ não é isso. Nosso orgulho é questão de celebrar aquilo que sempre nos foi negado que é reconhecer o dom que somos. Pra nós pessoas cristãs é celebrar o dom da diversidade criada e querida por Deus. Querida porque desejada. Deus nos quis, Deus nos desejou, e o desejo é uma questão passional, é força vital, é tesão pela vida. Tesão pela vida que nos faz capazes de não ter medo de lutar pela justiça, de resistir, de desbravar o mundo, assim como Juliana Marins desbravou o mundo.
Celebrar a diversidade do amor em meio às adversidades da vida é também sobre acolher esses paradoxos da vida. E é difícil acolher esses paradoxos, tanto as contradições da vida, quanto a liberdade do amor. Se a gente pensa no paradoxo de Deus encarnado, o infinito que se fez finito, é ao mesmo tempo um amor passivo porque aceita a morte, mas que é também totalmente ativo porque mantém a dinâmica do ato contínuo de criação-salvação. Assim como o ato criador de Deus não foi algo pontual lá do início dos primórdios da existência cósmica, mas é algo contínuo, Deus cria o tempo todo porque é criador, da mesma forma o ato salvador não foi algo pontual só lá na paixão, morte e ressurreição de Deus encarnado, mas é algo contínuo, Deus salva o tempo todo porque é salvador. A vida é um constante fluir de vida-morte-vida. Os ciclos da natureza estão todos aí como prova disso, mas tem coisa que a gente só vai entender na vida eterna. A gente precisa sair do campo racional, e focar mais no relacional, no coração, no corpo, na mão que segura no próximo, nas lágrimas que manifestam nossas dores e lavam nossos rostos, no abraço que acolhe em meio ao luto, nos pés firmes da caminhada coletiva.
Enquanto estamos aqui e agora, viver essa profundidade da nossa fé cristã exige muita fluidez, algo que o cristianismo cisheteronormativo não sabe abraçar. Existe uma suspeita cristã generalizada de tudo que não é absoluto, rígido, engessado, “a verdade”, esquecendo que a verdade é uma pessoa, Jesus Cristo, e por ser uma pessoa a verdade é relacional. E ser uma verdade relacional não significa cair num relativismo, mas sim no paradigma de que tudo é relativo à pessoa de Jesus, o paradoxo do Deus encarnado, sua vida, morte e ressurreição. Jesus Cristo, a verdade, se revela através da liberdade das nossas relações, através da liberdade do amor, através da diversidade do amor. Diversidade do amor porque o amor de Deus nos faz um, na diversidade que é a própria trindade, é una mas são três. O amor é uno mas não é um amor único, homogêneo, monolítico. Se fosse, a criação de Deus não seria tão diversa, porque tudo que foi e é criado é sinal do amor de Deus. A biodiversidade, a diversidade de gêneros e orientações sexuais, a diversidade de etnias, e tudo que nós enquanto criação co-criamos com Deus também pode ser sinal da diversidade do amor, a diversidade religiosa, a diversidade de relacionamentos monogâmicos ou não-monogâmicos, a diversidade de sistemas econômicos que não excluam nem explorem.
Por isso não dá pra falar de orgulho LGBTQIAPN+ sem falar de justiça, justiça em todas as suas dimensões, uma justiça interseccional. Justiça social em todas as suas dimensões, porque o racismo, a misoginia e a LGBTfobia ainda determinam o acesso à educação, aos espaços de tomada de decisão, à segurança, ao campo de trabalho, às políticas públicas. Justiça racial, porque o Brasil é o país que mais mata pessoas trans e a maioria são mulheres negras jovens. Justiça climática porque as pessoas nas zonas periféricas, rurais e interiores do Brasil são as que mais sofrem as consequências da crise climática e costumam ser também as que mais sofrem a LGBTfobia e a imposição de estereótipos de masculino macho dominante e feminina bela recatada do lar. Justiça reprodutiva porque quem mais sofre ou morre pela falta de direitos reprodutivos e acesso à educação sexual são as pessoas periféricas, negras, meninas, pessoas com útero que não encaixam nas categorias de gênero impostas pela sociedade. Justiça cultural porque os livros, as séries, os filmes, as músicas, as peças de teatro, os festivais, tudo costuma reproduzir a lógica cisheteronormativa ocidentalizada, incapaz sequer de reconhecer as realidades indígenas que rompem com o paradigma binário de gênero e sexualidade. Celebrar nosso orgulho é reivindicar nossos direitos pela justiça, é reivindicar a justiça para todas as pessoas. Porque a gente sabe que se uma pessoa é injustiçada somos todos nós que estamos sendo injustiçados, é todo um sistema estrutural reproduzindo a lógica de justiça para alguns e não para outros. A dor de uma pessoa é a dor de todos nós. Celebrar a diversidade do amor em meio às adversidades da vida é nos cuidarmos, nos unirmos pela justiça, justiça para todas as pessoas, é reivindicar a dignidade intrínseca a toda pessoa humana.
Ter começado minha reflexão trazendo a memória de quem veio antes, de quem abre caminho, é um movimento que eu tenho aprendido com os povos indígenas e os povos de terreiro. É essa coisa da Sankofa, olhar pra trás para ir adiante, a mesma compreensão que eu já ouvi sobre diversos povos indígenas que enxergam o passado na frente – temos que contemplar a história. Não só pra não repetir os mesmos erros do passado, mas pra reconhecer o caminho andado e reconhecer o quanto a esperança, nosso esperançar, não decepciona.
Romanos 5:5 “A esperança não nos decepciona, porque Deus derramou seu amor em nossos corações, por meio do Espírito Santo que ele nos concedeu.”
A esperança não decepciona porque o amor passivo-ativo de Deus foi derramado em nossos corações pela Divina e Rebelde Ruah fluída que nos foi dada. A esperança não decepciona porque eu existo aqui hoje, e eu só existo aqui hoje porque nós existimos, nós somos, nós resistimos, quem veio antes de nós resistiu e foi semente para que a gente pudesse florescer hoje e virar depois também semente para quem vier depois. E é nessa fluidez de vida-morte-vida que a comunhão de santos nos sustenta, essa força ancestral que se faz presente em nós, nos torna capazes de continuar adiante, de insistir na diversidade do amor, na liberdade da vida, e de afirmar assim como Cris Serra que “A vida é incrível” ou como a Juliana Marins nos seus posts do Instagram: “O melhor lugar do mundo é aqui e agora. A vida é boa.” Que Cris e Juliana nos acompanhem e nos sustentem nessa caminhada.
Suzana Moreira, é teóloga leiga, amante das artes, que toca violão e ukulele para acalmar a alma e brinca com a perna de pau para não esquecer da necessidade de equilíbrio e leveza na vida. Cresceu viajando todo ano para a região amazônica no estado de Tocantins onde aprendeu a pescar e se apaixonaou pela criação de Deus. Desde 2017 luta ativamente pela justiça socioambiental através dos seus trabalhos, pesquisas e engajamento teológico de base em grupos ecumênicos no Brasil, América Latina e Caribe. Mestra e Doutoranda em Teologia Sistemático-Pastoral pela PUC-Rio, pesquisa especialmente teologia do corpo, teologia latino-americana, e ecoteologia. Atua como Gerente de Programas para Conversão Ecológica no Movimento Laudato Si’ desde 2022 e faz parte do Comitê Diretivo Ecumênico do Tempo da Criação desde 2021.
@suziteologa