Foto: Guilherme Cavalli/Cimi
O Curso de Verão 2017 já começou! Tanto para os monitores, que desde o meio do ano participam de formações e reuniões, quanto para os palestrantes que no ano que vem, virão partilhar conosco suas vivências de construção de uma cultura de paz em tempos de violência.
Para nos introduzir um pouco no tema do Curso de Verão 2017: “Educar para a paz em tempos de injustiça e violência”, apresentaremos algumas entrevistas com os convidados que serão expositores durante o Curso.
O entrevistado dessa vez é Gilberto Vieira dos Santos, 45 anos, membro do Conselho Indigenista Missionário (Geógrafo e indigenista).
Ceseep – Qual a importância de, em tempos como os que vivemos, educar as pessoas para a paz?
Gilberto Vieira dos Santos – Em tempos que a mídia, sobretudo televisiva, vem trabalhando a formação de uma ‘cultura de violência’, expondo cotidianamente os telespectadores à conteúdos violentos ou legitimadores da violência (quando expõe um jovem amarrado em um poste por ter roubado um celular, ou um outro que foi preso pois estava se manifestando contra algo), cria-se nas pessoas esta cultura.
Quem pode, fecha-se em casas cada vez mais “seguras”, com alarmes e outros aparatos. Quem não pode, se ajeita como dá. Em muitos criou-se a tolerância para com a violência, pois esta seria – faz a mídia crer – o principal problema social. Não se aprofunda nos elementos causadores, nas causas diretas ou o quanto aquele jornal que fala da violência ou da suposta violência, está cometendo também uma cotidianamente através de suas pseudo-informações.
Neste ambiente é indispensável a educação para uma cultura de paz, mas esta se inicia desvelando o “manto sagrado” da mídia, expondo suas contradições e os elementos – sistema capitalista, exploração do/a trabalhador/a, precarização das relações de trabalho e dos direitos sociais.
Ceseep – Na sua exposição falará sobre A violência contra os povos indígenas e os camponeses, como se insere essa questão na sociedade nos dias atuais?
Gilberto Vieira dos Santos – Não se pode entender a violência contra povos indígenas, camponeses e comunidades tradicionais sem contextualiza-las no avanço do capital no campo brasileiro. Desde a chamada “revolução verde”, década de 1950, que ampliou o investimento do capital no campo, com a implementação do uso de fertilizantes e agrotóxicos, a consequente ampliação de áreas para monocultivos e a consequente pressão sobre estes povos e comunidades tradicionais, além de pequenos posseiros e pequenos proprietários de terra.
Este avanço ganha um implemento com a entrada do capital internacional, década de 1960, que passa a reforçar esta pressão sobre as populações e intensifica o êxodo rural. Este processo não teve fim, embora hoje a grande maioria da população brasileira seja urbana. Os povos e populações do campo, sobretudo na Amazônia, centro-oeste e nordeste, regiões para onde avança a chamada fronteira agrícola, vem sofrendo com as pressões causadas na abertura de novas áreas para o agronegócio.
A violência, então, é consequência direta desta abertura e novas áreas, que se vinculam a exploração de commodities quase exclusivamente destinados à exportação.
Um vínculo direto é que este mesmo agronegócio recebe bilhões de reais para uma produção baseadas em venenos e transgênicos, que não produz alimentos para os brasileiros (grande parte da soja, por exemplo, vai para a China e EUA), limitando na qualidade e variedade de alimentos. Em outras palavras, a soja, milho, carne e outros produtos resultantes de grande latifúndios estão manchados com o sangue de povos e populações, indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais.
Ceseep – Aumentou os casos de violência contra os camponeses e os povos indígenas?
Gilberto Vieira dos Santos – O Cimi vem há mais de três décadas realizando levantamentos a partir de suas equipes e em jornais, sites e a cada ano elabora o Relatório de Violência contra Povos Indígenas. Este relatório é um instrumento para visibilizar estas violências, além de possibilitar a análise destas no contexto nacional.
Vem se percebendo o avanço destas violências, desde o preconceito, ameaças, agressões e homicídios e diversas regiões brasileiras, com destaque para o Mato Grosso do Sul, onde a crueza desta violência se tornou mais evidenciada. Desde ataques por paramilitares, desaparecimento de corpos de lideranças assassinadas, estupros, atropelamentos e suicídios são frequentes naquele estado. Este avanço está vinculado a ampliação e a intensificação da exploração da terra para monocultivos de soja, cana, criação de gado para a exportação. Ou seja, a ampliação da violência está vinculada diretamente a ampliação desta exploração.
Vinculada a esta ampliação dos monocultivos, está a iniciativa de povos como os Guarani e Kaiowá, que pela impossibilidade de continuar em reduzidos espaços de terras aos quais foram historicamente submetidos (para dar espaço ao agronegócio, desse a década de 1950), decidem retormar seus territórios tradicionais. A reação do agronegócio e a violência.
Um dado assustador é que em 2015 foram mais de 36 ataques paramilitares à acampamentos indígenas que estão em luta pelo seus direitos territoriais.
Esta mesma violência se pode perceber contra camponeses. A Comissão Pastoral da Terra, que há anos também realiza um levantamento e publica o Caderno Conflitos, onde expõe a violência no campo, demonstra que esta violência está crescendo em algumas regiões, como em Rondônia, onde lideranças camponeses estão sendo assassinadas a mando do latifúndio.
Ceseep – Há em curso no Brasil uma tentativa de criminalizar movimentos que trabalham na defesa dos direitos desses grupos sociais?
Gilberto Vieira dos Santos – Sim, muitos exemplos podem ser citados.
Destaco a criação de duas Comissões Parlamentares de Inquéritos (CPI) contra o Cimi.
Um, bancada e conduzida por deputados vinculados ao agronegócio, se instalou na Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul, mesmo estado onde a violência se abate sobre os povos indígenas.
Entre as acusações que se buscou formular, estava a de que o Cimi financiava e incentivava as “invasões” de terras “dos fazendeiros”. Esta tentativa de criminalização se deu ao mesmo tempo pelos meios de mídia, jornais e redes sociais, caracterizando, ou caricaturando o Cimi como uma organização criminosa.
Entendemos e se tornou visível, que a intensão era anular a atuação de uma das poucas organizações que denuncia e busca garantir o direitos dos povos indígenas naquele estado.
Também na Câmara Federal uma CPI se instalou para “investigar” o Cimi e outras organizações como a Funai e o Incra.
Vinculada à CPI do Mato Grosso do Sul, esta também foi conduzida por deputados vinculados ao agronegócio e vem buscando (foi encerrada e reinstalada) criminalizar os apoiadores dos povos indígenas e sem-terras.
Ceseep – Como trazer a luta do camponês e do povo indígena para o dia a dia do brasileiro para que se torne um debate recorrente?
Gilberto Vieira dos Santos – Antes de tudo é necessário conhecer, tornar visível para as pessoas que estão longe ou perto dos fatos o que está acontecendo, como estes seguimentos sociais estão sendo tratados por particulares e pelo poder público (pois nestas violências também estão a omissão do Estado brasileiro em não demarcar as terras, fazer a Reforma Agrária, por exemplo). Este trabalho de informação e descaracterização do lugar social dos povos e dos camponeses é parte da quebra do paradigma forjado pela mídia de que sem-terra e bandido e indígenas são peças de museu.
Um papel fundamental para esta aproximação está nas mãos de pessoas que estão ou participam de espaços como Curso de Verão ou outras atividades do CESEP; conhecer, entender os processos, solidarizar-se e divulgar a realidade vivida e enfrentada por estas populações. Engajar-se na luta pela defesa será uma consequência.
Destaco em meu texto o papel do Estado ditatorial e dos governos mais contemporâneos na “institucionalização da violência” contra os povos, em nome de um suposto progresso. Esta realidade deve passar e ir além dos bancos escolares, de igrejas ou outros espaços religiosos e coletivos.
Quando afirmamos em uma de nossas campanhas que “A Causa Indígena é de Todos Nós”, estamos afirmando que o compromisso com estes povos é com a vida, com a diversidade, com a diferença, com o reconhecimento de que estes povos sofreram violências históricas, mas que, acima de tudo, resistem e seguem fazendo história.
Oxalá possam tem mais aliados para tornar este fazer história menos doloroso.