A democracia brasileira tem se mostrado nos últimos tempos como ainda muito frágil. É preciso e urgente que nos empenhemos em protegê-la e fortalecê-la. Cabe perguntar em que sentido temos, como pessoas cristãs e como igrejas, responsabilidade nesse esforço coletivo.
Segundo o apóstolo Paulo (Romanos 13), a autoridade constituída tem como finalidade propiciar o bem e coibir o mal. Daí que a atitude recomendada a pessoas cristãs em relação às autoridades é, em princípio, a de respeito e, inclusive, a de apoio, por exemplo, através do pagamento correto de tributos. Isso, contudo, não significa que as autoridades constituídas sempre cumpram corretamente com a sua finalidade.
Ao contrário, no dizer de Lutero, por exemplo, em seu escrito “Da autoridade secular, até que ponto lhe é devida obediência”, de 1523, um bom governante é “uma ave rara”. Por isso ele fala nesse escrito sobre os limites da obediência a autoridades constituídas. Assim, o apoio a autoridades e a regimes políticos nunca será incondicional, mas sempre crítico. Isso se expressa, em primeiro lugar, pela tradição consolidada de a comunidade cristã, quando reunida em culto, interceder pelas autoridades, quaisquer que elas sejam. Interceder é uma forma de apoio, mas é também uma forma de crítica, pois ao interceder-se por uma autoridade, está implícito que ela pode não estar cumprindo a contento com aquilo pelo que se intercede e de qualquer modo necessita dessa intercessão para se desincumbir a contento da responsabilidade com que está incumbida.
Outra razão para essa postura, em princípio, de solidariedade, mas sempre de forma crítica, consiste em que a fé cristã tem muito presente a enorme tentação que reside no exercício do poder. Não por nada, nas tentações que o próprio Jesus sofreu de parte de Satanás, se encontra o exercício do poder, poder ilimitado. Propôs Satanás a Jesus dar a ele “todos os reinos do mundo e a sua glória”, se Jesus, prostado, o adorasse (Mateus 4.8-9). Jesus resiste, lembrando que segundo a Escritura, a adoração é devida exclusivamente a Deus. Ou seja: nenhum poder terreno pode ser absoluto, mas deverá ser sempre limitado. A pretensão ao poder irrestrito sempre leva à opressão. A limitação do poder é condição essencial, para que ele possa ser exercido como serviço para o bem.
A Escritura também conhece o arbítrio do poder autoritário e sua opressão mortal. Em Apocalipse 13, o apóstolo descreve, com detalhes assustadores, a besta, diante da qual todas as pessoas são compelidas à força a ela se sujeitarem. São imagens de difícil discernimento quanto a seu alcance, mas a boa interpretação bíblica detecta aí a referência ao Império Romano e seu poder que, como sabemos, chegou a perseguir as comunidades cristãs e até a levar à morte inúmeras pessoas delas integrantes. Nesse caso extremo, cabe a quem professa a fé cristã resistir, não se dobrando, mas, se preciso, sofrendo o martírio.
Ficam assim descritos os parâmetros principais para o relacionamento da fé cristã com regimes e autoridades políticas. Poderíamos também resumir tudo na famosa e genial afirmação de Jesus de que devemos “dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mateus 22.21). Mas também essa frase de Jesus tem sofrido interpretações equivocadas de modo bastante generalizado. Entende-se, então, que Jesus teria estatuído uma separação absoluta entre Igreja e Estado, entre fé cristã e ação política. O âmbito político seria autônomo, e a fé cristã não deveria se envolver com política.
No entanto, a melhor tradução do dito de Jesus – e linguisticamente de todo correta – é a seguinte: “Daí a César o que é de César, mas a Deus o que é de Deus. “Mas a Deus o que é de Deus. Ou seja, Jesus afirma aí Deus estar “acima de tudo”, só que não como uma fórmula vazia e demagógica, mas como afirmação da real supremacia de Deus sobre tudo o mais e, portanto, também sobre regimes políticos e qualquer detentor de poder terreno. O poder de César é aí claramente limitado. Devemos entender “daí a César só o que é de César”. Só o que é de César, de maneira nenhuma o que pertence a Deus.
Dito de outra forma: a frase de Jesus de modo algum serve para sacramentar qualquer ordem política, mas, ao contrário, dá o parâmetro crítico a partir do qual as pessoas cristãs e as igrejas têm o compromisso de se posicionarem em relação a questões de ordem pública. E aí aquela afirmação do apóstolo Paulo de que as autoridades estão constituídas para servir ao bem e coibir o mal se torna relevante mais uma vez.
Feitas essas considerações bíblico-teológicas, examinemos a questão dos regimes políticos. Desde a promulgação da atual Constituição brasileira, em 5 de outubro de 1988, o Brasil se propõe a constituir um estado democrático de direito. Foi algo duramente conquistado pelo povo ao longo de 21 anos de ditadura militar. É claro que a democracia não é o único regime político possível. Ao contrário, ela é, na história, um regime relativamente recente, emergente, com matizes algo diferentes, sobretudo a partir da Revolução Americana (1776) e a Revolução Francesa (1789). Seu princípio básico é que “todo poder emana do povo” e “em seu nome será exercido”.
Ressalve-se que direitos fundamentais desse ordenamento ainda tiveram que ser conquistados ao longo do tempo subsequente, por exemplo, o direito ao voto de mulheres, negros e indígenas. No início dos Estados Unidos, o direito ao voto estava reservado apenas aos homens brancos proprietários de terra. Mas a mudança fundamental estava estatuída, na medida em que a vontade política passou a ser exercitada “debaixo para cima”, e não o inverso. Como proteção, estabeleceu-se o dispositivo de alternância no exercício do poder, mediante o recurso soberano e regular do voto cidadão.
Nada disso havia na época de Jesus, nem nos muitos séculos subsequentes. A pequena comunidade cristã emergente após Jesus não tinha qualquer participação na governança, nem podia ter, pelas circunstâncias peculiares do mundo em que estava inserida. Cabia-lhe, contudo, cooperar para o bem das pessoas, interceder pelas autoridades e, caso necessário, sofrer as consequências das perseguições que contra ela fossem desatadas. Ainda assim – ou por isso mesmo –, ela cresceu e paulatinamente foi ocupando espaços cada vez mais significativos na sociedade, até que, com a conversão do Imperador Constantino à fé cristã, no início do século IV, a fé cristã se tornou a religião oficial do Império Romano.
Tal aliança obviamente proporcionou à Igreja espaço e possibilidades impensáveis anteriormente. A Igreja se expandiu pelo Império, a fé cristã foi levada a outros povos, inclusive, mais de mil anos após, a outros continentes, também às terras habitadas por povos indígenas, que experimentaram a sua subjugação com a chegada concomitante da espada e da cruz. Fica evidente que todo esse desenvolvimento em nada contribuiu para preservar a credibilidade que caracterizou a fé cristã nos primeiros séculos. O que antes era serviço, intercessão e, eventualmente, sofrimento, passou a ser, em grande medida, interesses próprios, não poucos privilégios e dominação de outros povos não-cristãos. Fala-se da era constantiniana que, de certo modo, se estendeu até a modernidade e o advento das já citadas revoluções.
Foi a Reforma protestante no século XV, liderada por Lutero, Calvino e outros, que abriu caminho para o advento da democracia alguns séculos mais à frente. Lutero, por exemplo, se opôs à tutela das autoridades seculares pela Igreja. As autoridades seculares estariam legitimamente incumbidas de cuidar da paz e do bem de seus súditos. Já à Igreja cabia a proclamação da palavra libertadora de que somos pessoas agraciadas por Deus em Jesus Cristo e justificadas por fé somente. Foi uma distinção relevante, mas não uma separação total, como infelizmente ainda hoje muitas pessoas querem fazer crer. Pois da fiel proclamação da palavra de Deus faz parte inarredável a tarefa de vigia sobre todos os âmbitos, não deixando nunca de reivindicar também diante das autoridades seculares o império da verdade, da justiça e da paz, às quais se acrescenta o imperioso cuidado da boa criação de Deus.
Já Calvino foi um insistente arauto da soberania de Deus, a quem, unicamente, é devida a glória. Por outro lado, a ênfase da Reforma no sacerdócio universal das pessoas que creem, fez jus à compreensão de que todo ser humano, sem qualquer exceção, é criatura à imagem do próprio Deus, gozando, portanto, de uma dignidade que não pode ser violada por pretexto algum.
Em perspectiva histórica, alguns séculos não constituem um longo caminho que levou dessa fundamental redescoberta evangélica por parte da Reforma até o advento da modernidade e um ordenamento cultural e político democrático, que inclui essencialmente a afirmação dos direitos humanos. Em termos políticos, é igualmente essencial a possibilidade regrada da alternância do poder, através de eleições livres e universais.
Estabeleceu-se também a divisão entre três poderes – o executivo, o legislativo e o judiciário –, que devem atuar de forma independente e harmônica, o que não é particularmente fácil de se concretizar, mas é essencial para o necessário equilíbrio, complementação e correção mútua. Isso não significa que a democracia seja um sistema perfeito, longe disso. A fé cristã sabe que todo e qualquer sistema político será sempre precário, quando comparado com o Reino de Deus, e está sujeito, como tudo o mais, à tentação do poder arbitrário e do mal que venha a ser infligido às pessoas e a grupos mais vulneráveis. Por isso mesmo, a tarefa permanente da comunidade cristã e das igrejas é a de vigilância diante do arbítrio e de solidariedade com quem seja injustiçado e oprimido.
No entanto, apesar das limitações e falhas no exercício da democracia, não há qualquer razão para propugnarmos por um retorno a tempos e modelos de tempos passados, muito menos a chamados “períodos de exceção”, eufemismo para regimes ditatoriais que afastam a indispensável e irrestrita observância dos direitos humanos e que impõem à maioria da população a vontade de minorias detentoras do poder de finanças e armas. Ao contrário, as mazelas que podem ser registradas, como a corrupção, as desigualdades sistêmicas e as odiosas discriminações à base de preconceitos de gênero, de raça e de religião, precisam ser superadas pelos próprios meios que um ordenamento democrático propicia e deveria garantir, quais sejam, com observância de preceitos legais, a livre expressão da vontade popular, nos meios de comunicação, em demonstrações pacíficas e em eleições seguras. Foi muito sábia, além de espirituosa, a observação do ex-primeiro-ministro conservador da Grã-Bretanha, Winston Churchill: “A democracia é o pior dos regimes políticos, com exceção de todos os demais…” Logo, precisa ser preservada.
Justamente porque, em tese, um ordenamento democrático propicia e garante o bem comum, ele, na prática, também está sempre sujeito à tentativa de ação deletéria por parte de forças detentoras de privilégios, que não desejam compartilhar suas benesses com setores que não têm acesso a elas. Inclusive, é comum ver as forças com intentos ditatoriais aproveitarem-se dos mecanismos inerentes à própria democracia, para solapá-la e, quando possível, destruí-la. Daí a necessidade da vigilância permanente da cidadania e das instituições, sobretudo quando o sistema democrático de direito é atacado em suas bases. As igrejas não têm razão evangélica legítima para se eximir dessa responsabilidade.
Cheguemos ao Brasil. A partir da proclamação de República, em 1889, nosso país encetou o esforço de construção de uma democracia, de forma precária a princípio, mas ainda assim significativa. Nem por isso deixou de ser atacada e mesmo suprimida com intervenções ditatoriais mais de uma vez. Isso deveria nos atentar para o fato de que tampouco hoje podemos dar por garantido o estado democrático de direito. E não pode haver dúvida de que, inclusive com reflexos nefastos no próprio interior das igrejas, esse estado democrático de direito vem sendo recentemente atacado por dentro com cada vez mais vigor, de modo que a necessidade de vigilância e resistência se fazem cada vez mais necessárias.
Se momentaneamente esses ataques e tentativas de supressão de pilares essenciais à democracia recuam, não há nenhuma garantia de que não voltem, com mais força inclusive, num futuro nada distante. Em particular, teremos pela frente, uma campanha eleitoral que poderá suscitar ações de grande radicalidade e não há garantia alguma de que sequer o resultado das eleições de 2022 venha a ser acatado por todas as partes que as disputarão. Não está totalmente fora do horizonte a possibilidade de nova radical tentativa de quebra de nossa democracia.
Logo, será preciso aumentar a vigilância. É indispensável que o ainda frágil estado democrático de direito do Brasil seja defendido, preservado e fortalecido. É imperioso erguer a voz nesse sentido. E as igrejas não podem se eximir da responsabilidade de serem arautos da justiça e da paz, a partir dos valores supremos que conhecem do Reino de Deus. Infelizmente, não poucas igrejas, em grande parte em busca de proveitos próprios, têm se aliado às forças antidemocráticas, constituindo-se até mesmo em espécie de porta-bandeiras dessas forças. Felizmente há no seio das igrejas também outras vozes que têm alertado para os graves riscos que nosso país está correndo – são, contudo, menos do que poderiam e deveriam ser. Outras vozes mais precisam erguer-se, com clareza, em defesa do estado democrático de direito.
Em Apocalipse 3.14-22, o Apóstolo admoesta a igreja em Laodiceia, conclamando-a ao arrependimento, necessário por ela não ser, no dizer bíblico, nem fria nem quente, mas simplesmente morna. “Quem dera fosses frio ou quente!” (v. 16) Subentende-se que ser quente seria a opção correta e ser frio uma equivocada, mas a pior opção de todas é ser morno e insosso. Analogamente, podemos dizer em relação ao contexto que estamos abordando, que a alternativa evangélica correta e necessária é erguer a voz em defesa do estado democrático de direito. E também: no atual momento brasileiro, o silêncio funciona como suporte aos ataques que são desferidos contra a democracia. Concluímos: definitivamente, o silêncio não é, de forma alguma, alternativa evangélica legítima.
WALTER ALTMANN – O pastor luterano, Walter Altmann, ex-presidente da IECLB – Igreja Evangélica e Confissão Luterana do Brasil, pronuncia-se nas redes sociais sobre a situação política no país. Walter Almann é pastor, professor e assessor e parceiro do CESEEP nos cursos latino-americanos.