por Leonardo Boff
A Paixão de Cristo continua pelos séculos afora no corpo dos crucificados. Jesus agonizará até o fim do mundo, enquanto houver um único de seus irmãos e irmãs que esteja ainda pendendo de alguma cruz, à semelhança dos bodhisatwas budistas (os iluminados) que param no umbral do Nirvana, não entram para retornarem ao mundo da dor –samsara – em solidariedade com quem sofre, pessoas, animais e plantas. Nesta convincção, a Igreja Católica, na liturgia da Sexta-feira Santa, coloca na boca do Cristo estas palavras pungentes:
”Que te fiz, meu povo eleito? Dize em que te contristei! Que mais podia ter feito, em que foi que te faltei? Eu te fiz sair do Egito e com maná de alimentei. Preparei-te bela terrra, tu, a cruz para o teu rei”.
Celebrando a abolição da escravatura a 13 de maio de 1888, nos damos conta de que ela não foi completada ainda. A paixão de Cristo continua na paixão do povo negro. Falta a segunda abolição, da miséria e da fome. Ouvem-se ainda os ecos dos lamentos de cativeiro e de libertação, vindos das senzalas, hoje das favelas ao redor de nossas cidades. A população negra ainda nos fala em forma de lamento e de súplica.
“Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me!
Eu te inspirei a música carregada de banzo e o ritmo contagiante. Eu te ensinei como usar o bumbo, a cuica e o atabaque. Fui eu que te dei o rock e a ginga do samba. E tu tomaste do que era meu, fizeste nome e renome, acumulaste dinheiro com tuas composições e nada me devolveste.
Eu desci os morros, te mostrei um mundo de sonhos, de uma fraternidade sem barreiras. Eu criei mil fantasias multicores e te preparei a maior festa do mundo: dancei o carnaval para ti. E tu te alegraste e me aplaudiste de pé. Mas logo, logo, me esqueceste, reenviando-me ao morro, à favela, à realidade nua e crua do desemprego, da fome e da opressão.
Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me!
Eu te dei em herança o prato do dia-a-dia, o feijão e o arroz. Dos restos que recebia, fiz a feijoada, o vatapá, o efó e o acarajé: a cozinha típica da Bahia e do Brasil. E tu me deixas passar fome. E permites que minhas crianças morram famintas ou que seus cérebros sejam irremediavelmente afetados, infantilizando-as para sempre.
Eu fui arrancado violentamente de minha pátria africana. Conheci o navio-fantasma dos negreiros. Fui feito coisa, peça, escravo. Fui a mãe-preta para teus fihos.Cultivei os campos, colhi o fumo e plantei a cana. Fiz todos os trabalhos. Fui eu que construi a belas igrejas que todos admiram e os palácios que os donos de escravos habitavam. E tu me chamas de preguiçoso e me prendes por vadiagem. Por causa da cor da minha pele me discriminas e me tratas ainda como se continuasse escravo.
Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo:que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me!
Eu souberesistir, consegui fugir e fundar quilombos: sociedades fraternais, sem escravos, de gente pobre mas livre, negros, mestiços e brancos. Eu transmiti apesar do açoite em minhas costas, a cordialidade e a doçura à alma brasileira. E tu enviaste o capitão do mato para me caçar como bicho, arrasaste meus quilombos e ainda hoje impedes que a abolição da miséria que escraviza, seja para sempre verdade cotidiana e efetiva.
Eu te mostrei o que significa ser templo vivo de Deus. E, por isso, como sentir Deus no corpo cheio de axé e celebrá-lo no ritmo, na dança e nas comidas. E tu reprimiste minhas religiões chamando-as de ritos afro-brasileiros ou de simples folclore. Invadiste meus terreiros jogando sal e destruindo nossas figuras sagradas. Não raro, fizeste da macumba caso de polícia. A maioria dos jovens assassinados nas periferias, na idade entre 18 e 24 ano, são negros, pelo fato de serem negros ou suspeitos de estarem a serviço das máfias da droga. A maioria deles são simples trabalhadores.
Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo:que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me!
Quando com muito esforço e sacrifício consegui ascender um pouco na vida, ganhando um salário suado, comprando minha casinha, educando meus filhos, cantando o meu samba, torcendo pelo meu time de estimação e podendo tomar no fim de semana uma cervejinha com os amigos, tu dizes que sou um negro de alma branca, diminuindo assim o valor de nossa alma de negros dignos e trabalhadores. E nos concursos em igual condição quase sempre me prostergas em favor de um branco.
E quando se pensaram políticas que reparassem a perversidade histórica, permitindo-me o que sempre me negaste, estudar e me formar nas universidades e nas escolas técnicas e assim melhorar minha vida e de minha família, a maioria dos teus grita: écontra a constituição, é uma discriminação, é uma injustiça social.
Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: Que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me!”
Meus irmãos e irmãs negros, nesse dia 20 de novembro, dia de Zumbi e da consciência negra quero homenagear todos vocês que conseguiram sobreviver, por todo este longo tempo, porque a alegria, a música, da dança e o sagrado estão dentro de vocês, apesar de toda a via-sacra de sofrimentos que injustamente lhes são impostos.
Com muito axé e amorosidade: LEONARDO BOFF, branco mas opção negro