Nesse domingo XVII do tempo comum (ano B), o evangelho lido nas comunidades contam a versão do quarto evangelho sobre a partilha dos pães no deserto. É a cena que a tradição das Igrejas costumou chamar de “milagre da multiplicação dos pães”, linguagem que o evangelho não usa. Nem chama de milagre. É um sinal que Jesus faz (ver v. 14). E menos ainda fala em multiplicação. O único verbo usado ali para a ação de Jesus é que ele “tomou os pães, deu graças e os repartiu” (v.11).
O evangelho situa esse fato em um contexto bem preciso: “Estava próxima a Páscoa dos judeus”(v. 4). O quarto Evangelho parece que faz questão de mostrar que quando todos os judeus subiam a Jerusalém para celebrar a Páscoa, Jesus vai para o deserto acompanhado uma multidão e ali a Páscoa dele consiste em “repartir o pão como sinal do que ele queria para o mundo todo”.
Sempre achei estranho que o evangelho de João é o único que não contém o relato da eucaristia e nem faz nenhuma referência direta a isso. No entanto, desde o começo desse capítulo, usa uma linguagem eucarística até hoje usada pelas Igrejas: “tomou o pão, deu graças e o repartiu”. Em grego, idioma original do texto, dar graças é eucharistien.
O fato de que todos os quatro evangelhos reproduzem essa cena e os três sinóticos a contam cada um em duas versões diversas, mostra que as primeiras comunidades cristãs compreenderam que na vida e na ação de Jesus, a prioridade era o seu compromisso pela vida das pessoas, especialmente das mais empobrecidas que viviam como os hebreus no deserto, com fome e sem força para prosseguir a caminhada da libertação.
O quarto evangelho que, normalmente, não dá nenhuma importância aos discípulos e nunca os chama de apóstolos, nesse caso, revela Filipe e André envolvidos na história. Querem comprar pão, mas veem que o comprar não resolveria o problema da fome do povo. Alguém descobre um menino que tem consigo cinco pães e dois peixes. Estranho, no deserto e em meio a tal multidão um menino, mas talvez, justamente por ser menino, ainda sem a malícia do adulto, é o único que revela o que tem consigo… cinco pães e dois peixes (v. 9). E a partir desse pouco, Jesus faz o seu sinal. Manda que se sentem todos e começa a repartir…
No comentário a esse evangelho, alguém observou que se falou em cinco pães e dois peixes, mas depois parece que o texto todo se concentra nos pães. Isso é mais uma relação com a ceia de Jesus na eucaristia.
As perguntas dos discípulos continuam sendo as nossas hoje:
– Como podemos nós, com nossos poucos e pobres meios, resolver o problema da fome do povo?
– Como garantir trabalho aos desempregados, acolher os migrantes, acabar com o comércio das armas, criar um mundo de partilha?
Gandhi, pobre advogado meio falido e vindo de um tempo de migrante na África do Sul tinha menos do que cinco pães e dois peixes quando começou a luta pacífica pela libertação da Índia. O que na vida e no trabalho do pastor Martin-Luther King, nos Estados Unidos do começo dos anos 60, teria sido correspondente a esses cinco pães e dois peixes para começar o trabalho? O que foi para Dom Helder Camara os cinco pães e dois peixes para começar o seu trabalho pelos pobres em plena época de ditadura militar e no nordeste brasileiro? O que é para nós, hoje, na nossa vida e no nosso contexto de ação os cinco pães e dois peixes que é pouco, mas que entregue a Deus e aos irmãos se tornará pão partilhado e que provoca saciedade e abundância?
Cada dia mais me convenço de que as Igrejas cristãs traíram o projeto de Jesus ao transformar a ceia da partilha em um culto clerical e centrado no poder sacerdotal do padre e no religioso de certa forma separado do humano e do social.
O apóstolo Paulo escreveu que toda vez que uma comunidade cristã celebra a ceia de Jesus sem que isso mexa na questão da partilha e da justiça e deixe pessoas da comunidade na carência ou insegurança alimentar, essa comunidade peca contra a ceia de Jesus (1 Cor 11). Que Deus me perdoe (nos perdoe) a facilidade com que celebramos sem cuidar dessa exigência evangélica de veracidade da partilha que tem de ter toda comunhão eucarística. E que ele nos ilumine e nos ajude a redescobrir e a sinalizar com mais força o caráter revolucionário e subversivo da ceia de Jesus e da sua partilha do pão. Faze, Senhor, que quando cantemos “Pão em todas as mesas”, de fato, não seja apenas um desejo mais ou menos utópico, mas seja o canto da decisão que tomamos em lutar com todas as nossas forças para que essa profecia de
Jesus se torne plena verdade em nossas vidas e Deus não seja tido como alguém que promete e não cumpre.
A mesa tão grande e vazia, De amor e de paz, de paz!
Onde há luxo de alguns, Alegria não há jamais!
A mesa da Eucaristia nos quer ensinar, ah, ah
Que a ordem de Deus, nosso Pai é o pão partilhar
Pão com todas as mesas
Da Pascoa a nova certeza
A festa haverá
E o povo a cantar, aleluia.
Marcelo Barros, monge beneditino, teólogo e biblista, assessor das comunidades eclesiais de base e de movimentos sociais. Tem 55 livros publicados, dos quais o mais recente é “Conversa com o evangelho de Marcos”. Belo Horizonte, Ed. Senso, 2018.