Acompanhando, lendo e ouvindo as palavras e especialmente os gestos do bispo de Roma, como gosta de ser chamado, o Papa Francisco e a imagem que ele se faz do padre para os dias de hoje logo me veio à mente, o Padre Cicero Romão Batista.
Surpreso disse para mim mesmo: o que ele está apresentando é exatamente aquilo que o Padre Cícero fazia. O estilo de padre vivido pelo Padre Cicero agradaria, seguramente, o atual Papa.
1.Características do Papa Francisco
Para começar, permitam-me dizer algumas palavras sobre Francisco, porque é uma das melhores bênçãos que aconteceu para a Igreja e para a Humanidade nos últimos anos.
Em primeiro lugar ele trouxe uma primavera para a Igreja depois de um longo inverno que significaram os pontificados de João Paulo II e de Bento XVI. Papas da de volta à grande disciplina e às doutrinas severas
Em segundo lugar, fez da Igreja uma casa com portas e janelas abertas no lugar de uma fortaleza fechada e imaginariamente cercada de inimigos.
Em terceiro lugar, ele quis se chamar bispo de Roma, em vez de Papa. Propôs-se dirigir a Igreja com a caridade e não com o direito canônico. Disse claramente, excetuando os pedófilos e os ladrões do Banco Vaticano, não quer condenar ninguém.
Em quarto lugar, deixou o palácio papal e foi morar numa hospedaria onde os padres que vem a Roma se hospedam. Ele quis um quarto comum como o dos hóspedes. Come junto com todos, na fila, dizendo, com humor: “assim é mais difícil que me envenenem”.
Em quinto lugar, prefere o encontro existencial com Cristo do que a proclamação de doutrinas sobre Cristo. E disse: é a pessoa de Cristo que nos salva não as doutrinas.
Em sexto lugar deve-se passar da exclusão para a inclusão. A Igreja Católica deve incluir e reconhecer as outras Igrejas que também levam avante a herança de Jesus e juntas porem-se a serviço do mundo, especialmente dos mais pobres. E dialogar com total abertura com as demais religiões e caminhos espirituais.
Em sétimo lugar, o centro não é ocupado pela Igreja mas pelo mundo que precisa de esperança, de alegria e de salvação. A Igreja deve ser uma espécie de hospital de campanha que não olha se o ferido é muçulmano, negro ou cristão. Basta saber que está sangrando e que deve ser cuidado.
Em oitavo lugar, devemos passar do mundo aos pobres. Francisco deseja “em saida para as periferias existenciais”, antes de tudo uma Igreja dos pobres, com os pobres e para os pobres. Para onde chega, sempre vai visitar os pobres, entra em suas casas, abraça-os, beija-os e toma um cafezinho com eles.
Em nono lugar, quer que os pastores, padres e bispos tenham cheiro de ovelhas, quer dizer, que andam no meio do povo, que” tenham sempre um sorriso de um pai que contempla os seus filhos e os seus netos, que não tenham cara de vinagre, nem tristes como se fossem ao próprio enterro”. Que sejam testemunhos da alegria do evangelho, uma categoria essencial de sua pregação.
Em décimo lugar quer que todos façam a revolução da ternura e da misericórdia, acolhendo a todos com o coração aberto, exercendo a misericórdia ilimitada diante dos que fracassaram e pecaram, mostrando-se como o pai do filho pródigo que se alegrou com o filho que se perdeu e voltou à casa paterna.
Estes são os pontos mais relevantes da figura de Francisco que veio do fim do mundo, do caldo cultural e eclesial que se criou na nossa América Latina.
Depois de ouvir as lições da teologia da libertação na versão argentina, que é a teologia do povo oprimido e da cultura silenciada, isso o diz seu professor ainda vivo, Juan Carlos Scannone, ficou tão impressionado que já como estudante fez uma opção pelos pobres e prometeu visitar toda semana uma favela.
Como Cardeal, não morava no palácio, ia de ônibus, de metro ou a pé. E fazia sua própria comida. Como bispo de Roma, se despojou de todos os títulos de honra e glória, especialmente o manto sobre os ombros cheio de joias, símbolo do poder absoluto dos imperadores e dos papas e começou a usar um mantozinho branco. A cruz é de prata barata sem qualquer adorno. E vai sozinho ao barzinho perto do Vaticano comer um pastel que gosta.
E coisa espantosa, que nunca ocorreu antes na história da Igreja: por quatro vezes, três em Roma e uma em Santa Cruz de la Sierra na Bolívia convocou os representantes dos movimentos sociais populares do mundo inteiro. Queria saber da boca deles os sofrimentos que padecem e que indicassem quem no mundo coloca essa cruz nas costas deles. Nenhum Papa antes deles condenou tanto a idolatria do dinheiro, e aqueles que saqueiam os escassos bens e serviços da Mãe Terra. Pensa sempre no capitalismo como um sistema anti-vida.
É dele a encíclica “Laudato Si’: cuidando da Casa Comum” que o colocou, segundo os especialistas, na ponta da discussão ecológica integral, do mundo inteiro.
- O Padre Cícero antecipador do tipo de padre querido pelo Papa Francisco
Vamos agora refletir rapidamente sobre a prática pastoral do Padre Cícero, o grande Patriarca do Nordeste, o Padrinho Universal, o Intercessor junto a Deus em todos os problemas da vida, o Santo cuja intercessão nunca falha. Os devotos e os romeiros sabem disso.
Não vou resumir sua história que todos conhecem. Apenas digo que, para mim, há três fases principais na vida dele que têm a ver com aquilo que ensina o Papa.
A primeira é a fase de Juazeiro que começa no dia 11 de abril de 1872. Quando era jovem sacerdote de 28 anos foi chamado rezar uma missa em Juazeiro, uma vilazinha com duas ruas, 36 casas e uma capelinha dedicada a Nossa Senhora das Dores. Atendeu aquele povo, mas não gostou do lugar. Pensava ser professor no seminário da Prainha em Fortaleza.
Foi quando, cansado de ouvir confissões, foi tirar uma soneca na escolinha próxima. E ai teve um sonho que mudou a sua vida. Como sabemos, o sonho é uma forma como Deus se comunica, como com São José que nunca disse uma palavra, mas que teve sonhos, nos quais acreditou. O Padre Cícero viu em sonho o Sagrado Coração de Jesus, sentado à mesa com os 12 Apóstolos. De repente entrou na sala uma multidão de retirantes, famintos e maltrapilhos. Jesus começou a falar com eles. E de repente voltou-se ao Padre Cícero e disse: “E você, Padre Cícero, tome conta deles”.
O Padre Cícero, perplexo e até assustado, logo entendeu a mensagem: devia ficar em Juazeiro. Foi para o Crato, trouxe a mãe, as duas irmãs e uma jovem escrava liberta e se mudou definitivamente para Juazeiro.
A segunda é a fase do milagre do sangue na hóstia, fase da Maria de Araújo. Começa no dia primeiro de março de 1889. Às 5 da manhã o Padre Cícero deu a comunhão, antes da missa, a várias mulheres piedosas, chamadas de beatas. Deu a comunhão a Maria de Araújo, negra, costureira e lavadeira, de 28 anos. Sem nenhuma explicação ela caiu por terra e junto foi a hóstia consagrada. De repente viu que a hóstia estava tingida de sangue. O mesmo se repetiu por dezenas de vezes, sempre recolhendo o sangue num paninho.
Para o Padre Cícero e assistentes, não havia dúvida: era o sangue sagrado de Cristo. Os panos foram colocados numa urna de vidro. Durante dois anos multidões do vale do Cariri começaram a chegar a Juazeiro par ver os panos e tocar na urna. Contam que aconteciam muitos milagres.
O bispo de Fortaleza Dom Joaquim José Vieira mandou por duas vezes analisar a situação. Na primeira, se concluiu tratar-se realmente de um milagre. Mas esse resultado não agradou o Bispo. Mandou teólogos ao lugar que acabaram concluindo tratar-se de um embuste. Esta versão foi acolhida pelo bispo.
Devido à ocorrência cada vez maior de romeiros, o Bispo Dom Joaquim interpretou aquele fenômeno como um cisma, quer dizer, uma divisão na Igreja. De forma muito autoritária suspendeu o Padre Cícero, proibindo-o de pregar, confessar e orientar os fiéis. Mas podia celebrar a missa.
O bispo Joaquim, temeroso, mandou toda uma documentação para o Santo Ofício, a antiga Inquisição, em Roma. Esta não reconheceu o milagre. Ao contrario disse que se tratava de “gravíssima e detestável irreverência e ímpio abuso à Santíssima Eucaristia”. Bastou esta declaração para o Bispo Joaquim interditar todos os atos religiosos em Juazeiro e proibir o Padre Cícero de celebrar Missa.
Mais tarde em 1916 veio de Roma a excomunhão, mas que nunca foi aplicada e nem o Padre Cícero teve conhecimento dela, creio que por medo da reação dos romeiros por parte do bispo Dom Joaquim.
Deixando para trás estes fatos, perguntamo-nos: como agia pastoralmente o Padre Cícero? Aqui, me parece que ele se coloca na linha do que o Papa Francisco gostaria que todos os pastores fizessem. O Padre Cícero usava três métodos:
1) Convivência direta com o povo, cumprimentado a todos.
2) Visita a todas as casas dos sítios, falando com todos, abraçando as crianças e abençoando a casa, os animais e as pessoas. Andava quase sempre a pé com o seu bastão.
3) Orientar o povo nas pregações e nas novenas; ao anoitecer, diante da casa fazia reuniões diárias com povo onde incentivava a vivência dos bons costumes, o estudo nas escolinhas, encaminhava para os vários ofícios e dava dicas de ecologia como veremos logo a seguir.
A fama correu pelo sertão todo. De longe vinham receber seus conselhos e suas bênçãos, porque era inteiramente dedicado ao povo, sempre disponível, atento em ouvir, carinhoso em receber a todos até ricos que vinham conhecê-lo. Era impecável em sua vida pessoal, vivendo pobremente e não cobrava nada por seu trabalho pastoral (José Comblin, O Padre Cícero do Juazeiro. São Paulo: Paulus 2011).
Era extremamente obediente. Nunca se queixou dos castigos pesados que recebeu. Amava profundamente a Igreja e respeitava a figura do Papa e dos bispos.
De todas as partes vinham romeiros pedir-lhe conselhos. Tinha a fama de pacificador e de resolver todos os conflitos; conhecia as ervas e remédios caseiros para as doenças e até tinha a fama de bom casamenteiro.
Ele se interessava pelo bem estar do povo: criou centros onde se aprendiam as profissões de marceneiro, ferreiro, alfaiate, artesão com couro ou palha e outros ofícios. Até criou uma relojoaria que fabricava bons relógios. Abriu 12 escolinhas particulares e duas publicas, além de um orfanato e a primeira Escola Normal Rural.
A Terceira fase é do Padre Cícero politico. As portas da Igreja se fecharam para ele. Mas para continuar a servir o povo entrou na política.
Aqui cabe lembrar uma frase do Papa Francisco quando esteve no Brasil: “É uma obrigação para o cristão envolver-se na política. Devemos envolver-nos na política, pois a política é uma das formas mais altas da caridade”. Vai mais longe o Papa Francisco ao afirmar: ”Atualmente, se um cristão não é revolucionário não é cristão. Deve ser revolucionário da graça”.
Importa esclarecer que o Padre Cícero entrou na política a contragosto, com a idade de 67 anos, mas aceitou para ser o mediador-conciliador entre vários coronéis em litígio. Por 20 anos, até 1927 foi prefeito de Juazeiro, comparecendo como a figura mais respeitada do Cariri. Em 1912, foi eleito vice-governador do Ceará por dois mandatos. Mas cansado se retirou da política pública e atendia os romeiros e políticos em sua casa.
Sua preocupação maior era poder continuar com sua missão pastoral e voltar a celebrar missa. Chegou ir a Roma em 1898 ficando lá oito meses. Conheceu os salesianos e entusiasmou-se com o seu carisma a ponto de deixar em herança para eles quase tudo o que possuía em Juazeiro. Pôde encontrar-se rapidamente com o Papa Leão XIII que lhe permitiu rezar missa em Roma e na volta novamente em Juazeiro. Mas foi em vão. O bispo manteve a proibição.
Mas vendo as multidões que vinham pedir conselho, ele, por amor ao povo, exerceu a desobediência leal: desobediência a uma lei eclesiástica e humana em função de uma lealdade ao mandamento maior do amor e do serviço aos pobres que ela amava do fundo do coração.
Era tido como o pai dos pobres. Foi padrinho de batismo de dezenas de crianças (daí a expressão “meu padim Padre Cícero), o consolador dos abandonados dos sertões. Distribuía com calma e serenidade, por horas a fio, conselhos e bênçãos a todos os que o procuravam. Essa desobediência não era opor-se pura e simplesmente às autoridades eclesiásticas, mas entender que o amor ao pobre e vulnerável possui autoridade maior, pois vem do Evangelho e de Jesus.
O Padre Cícero, pai dos pobres, incansavelmente dedicou 62 anos de sua vida à causa dos deserdados do Nordeste. Faleceu a 20 de julho de 1934.
3. Qualidades do sacerdote pregadas pelo Papa e vividas pelo Padre Cícero.
Muitas vezes o bispo de Roma falou aos sacerdotes e aos estudantes dos vários colégios pontifícios. Ai delineia qualidades para o sacerdote, qualidades essas que o Padre Cícero viveu em antecipação.
-Ao Episcopado italiano em 16 de maio de 2016 diz: ”O padre não pode ser burocrático, mas alguém que é capaz de sair de si, caminhando com o coração e o ritmo dos pobres”. Não viveu a vida inteira assim o Padre Cicero?
-Na missa do crisma na Basílica Vaticana no dia 17 de abril de 2014 afirma: “a disponibilidade do sacerdote faz da Igreja a casa dos pobres, o lar dos que andam pelas ruas, o acampamento dos jovens e o lugar da cura dos doentes”. Na vida inteira o Padre Cícero não fez outra coisa.
-Aos bispos recém sagrados em 18 de setembro de 2016 proclama: “o pastor deve ser capaz de escutar e de encantar e atrair as pessoas pelo amor e pela ternura”. Essa era uma qualidade eminente do Padre Cicero, testemunhada por todos.
– Falando aos seminaristas lombardos lhes diz: “busquem o caminho da simplicidade que facilita encontrar o outro, simplicidade na linguagem e evitar doutrinas complicadas de modo que todos os possam entender e encontrar o Cristo vivo, morto e ressuscitado”. A simplicidade extrema do Padre Cícero era notória e permitia que todos se aproximassem confiantes de serem abraçados por ele.
– Num sermão de 6 de março de 2014, o Papa Francisco foi enfático ao dizer:” o sacerdote está chamado a ter um coração que se comove; deve ser uma pessoa de compaixão e de misericórdia. Deve ser como Jesus que se comovia diante do povo disperso e desalentado; deve estar cheio de ternura para com os excluídos e fracos; por amor é preciso consolar e curar as feridas dos machucados”.
Foi o que o Padre Cícero viveu a vida inteira em seu contato com o povo.
- O Padre Cícero, antecipador da ecologia integral
Como é sabido, o Papa Francisco publicou uma importantíssima encíclica Laudato Si’: cuidando da Casa Comum (2015). Não se trata de uma encíclica verde, meramente ambientalista, mas uma encíclica sobre a ecologia integral que incorpora a natureza, a sociedade, a política, a educação e a espiritualidade. Com grande surpresa nossa, o Padre Cícero publicou seus 10 famosos mandamentos ecológicos que me permito transcrever, mas enfatizando apenas alguns, válidos até hoje:
–não derrube o mato nem mesmo um só pé de pau.
–não toque fogo nem no roçado nem na caatinga.
-não cace mais e deixe os bichos viverem.
-não crie o boi nem o bode soltos: faça cercados e deixe o pasto descansar para se refazer.
-não plante em serra acima, nem faça roçado em ladeira muito em pé;
–deixe o mato protegendo a terra para que a água não a arraste e não se perca a sua riqueza.
–faça uma cisterna no oitão de sua casa para guardar água da chuva.
–represe os riachos de cem em cem metros ainda que seja com pedra solta.
–plante cada dia pelo menos um pé de algaroba, de caju, de sabiá ou outra árvore qualquer até que o sertão seja uma mata só.
–Aprenda a tirar proveito das plantas da caatinga, como a maniçoba, a favela e a jurema; elas podem ajudar a conviver com a seca.
–Se o sertanejo obedecer a estes preceitos, a seca vai aos poucos se acabando, o gado melhorando e o povo terá sempre o que comer.
-Mas, se não obedecer, dentro de pouco tempo o sertão todo vai virar um deserto só”. (Pensamento vivo do Padre Cícero, Ediouro, Rio de Janeiro 1988).
5. Conclusão: a atualidade do modelo sacerdotal do Padre Cícero.
Para a Igreja popular, o Padre Cícero sempre foi reconhecido como santo. Padeceu sob a mão dura do bispo de Fortaleza e da Inquisição, sem queixa e livre de qualquer amargura e sem deixar de amar a Igreja e seus pastores. Nunca se rebelou.
Mas está chegando o tempo de a Grande Igreja se reconciliar com os romeiros que o veneram e com o Padre Cícero, tido como pastor ideal.
Vale uma Igreja que distribui sacramentos, missas, confissões, batismos, casamentos e enterra os mortos, embora corra o risco de se fazer burocrática. Mas é importante que a Igreja seja, além disso, a grande companheira do povo, participando de seus padecimentos e alegrias, acolhendo com ternura a todos, dando conselhos e benções.
É esse tipo de Igreja, preferida pelo atual Papa, sem deixar de dar valor ao outro tipo mais tradicional. E é dessa Igreja popular que o povo mais aprecia e mais precisa não só no Nordeste, mas no Brasil todo.
Graças ao bispo local, Dom Fernando Panico, beneficiado com uma cura de um câncer incurável, pela intercessão do Patriarca do Nordeste e do Brasil, tudo está tomando o rumo da reconciliação. Dom Frei Luiz Cappio, meu ex-aluno em Petrópolis, conversou em 2010 com o Papa Bento sobre a figura excepcional de sacerdote e de santo que foi o Padre Cícero. O Papa conhecia o caso e prometeu acelerar o processo de reabilitação e de reconciliação.
A Congregação da Doutrina da Fé de 27 de outubro de 2014 afirmou num documento “não poder proceder à solicitação de reabilitação do sacerdote” Padre Cícero Romão Batista (primeiro Omnes). Mas, quase de forma contraditória assevera que “julga oportuna, uma certa forma de reconciliação histórica…que coloque em luz também os lados positivos de sua figura”(segundo Omnes).
Para entender esta aparente contradição, devemos entender a forma como esta instância doutrinária profere suas sentenças. Estas são de suas ordens: de tuto e de vero. Afirmação de tuto significa afirmação de “segurança” e de “prevenção”, sem querer decidir acerca da verdade do fato analisado. De vero é quando se quer decidir sobre a “verdade” do fato. Esta é a sentença mais peremptória. Tudo leva a entender, dada a segunda observação (Omnes 2) que a Congregação para a Doutrina da Fé se ateve ao aspecto da segurança (de tuto) que possui um valor menor e não ao aspecto da verdade(de vero) que fecharia totalmente a questão.
Isso fica mais claro na carta do Secretário de Estado do Vaticano, a primeira pessoa depois do Papa em autoridade, o Card. Pietro Parolin, enviada ao bispo Dom Fernando Panico, bispo diocesano do Crato, em 20 de outubro de 2015.
Este documento vem de uma instância mais alta que aquela da Congregação da Doutrina da Fé. O Card. Parolin, como Secretário de Estado, é a primeira pessoa após o Papa. Explicitamente escreve em nome do Papa Francisco. Deixa para trás a discussão do passado, e vai logo ao centro da questão que é pastoral: põe em realce a figura de Padre Cícero Romão Batista e a nova Evangelização, procurando concretamente ressaltar “os bons frutos que hoje podem ser vivenciados pelos inúmeros romeiros que, sem cessar, peregrinam a Juazeiro atraídos pela figura daquele sacerdote”. Insiste que se deve “por em evidência aspectos positivos de sua vida e figura, tal como atualmente é percebida pelos fiéis”.
O ponto alto da afirmação do Card Parolin se encontra no número 5 de sua carta onde afirma: “No momento em que a Igreja inteira é convidada pelo Papa Francisco a uma atitude de saída, ao encontro das periferias existenciais, a atitude do Padre Cícero em acolher a todos, especialmente aos pobres e sofredores, aconselhando-os e abençoando-os, constitui, sem dúvida, um sinal importante e atual”.
Por fim enfatiza que “a presente mensagem foi redigida por expressa vontade de sua Santidade o Papa Francisco”.
Temos aqui, portanto, um pronunciamento da autoridade papal, a mais alta da Igreja, abrindo o caminho para a reconciliação. E dadas as virtudes eminentes do Padre Cícero e a conclamação a “agradecer ao Senhor por todo bem que ele suscitou por meio do Padre Cícero” se criam as condições para a sua beatificação e, por graça do Altíssimo e por amor dos romeiros, seja também oficialmente canonizado para ser santo não apenas do Nordeste, mas de toda a Igreja Universal, podendo ser venerado em todos os países onde há católicos.
O Padre Cícero será o grande santo do novo estilo de caminhar com o povo, com “cheiro de ovelha”, porque o ama e sabe conduzi-lo pelo caminho das verdes campinas e das águas límpidas como o diz o Bom Pastor do salmo 23.
Que nossa geração possa ainda ver esta glória como veremos no dia 15 de agosto de 2017 a canonização pelo Papa Francisco, do bispo Dom Oscar Arnulfo Romero de El Salvador, mártir dos direitos humanos e da libertação dos oprimidos.
Estou seguro de que o dia chegará para o Padre Cícero Romão Batista: será beatificado e canonizado como um santo original e típico de nossa terra, batida pela seca e terra das mulheres e dos homens fortes e invencíveis e cheios de fé.
Leonardo Boff é articulista do JB Online e escreveu A nova evangelização: a perspectiva dos pobres, Vozes 1991.
Bibliografia essencial
– José Comblin, O Padre Cícero do Juazeiro, Paulus, 2011.
– Ralph della Cava, Milagre em Juazeiro, Paz e Terra, 1985.
– Amália Xavier de Oliveira, O Padre Cícero que eu conheci, Editora Massangana, Recife 1981.
-Azarias Sobreira, O Patriarca de Juazeiro, Vozes, Petrópolis 1968.
-Therezinha Stella Guimarães e Anne Dumoulin, O Padre Cícero por ele mesmo, Edições INESP, Fortaleza 2015.
-Annette Dumoulin, Em sonho. Uma boa conversa entre o romeiro Sebastião e Padre Cícicero, Paulinas 2017.
-Antônio Romero Siqueira Dodou, De Tabuleiro a Juazeiro. Reflexões sobre Cícero: o homem,o padre e o líder, Edição do autor 2016.
-Ercília Maria Braga de Olinda, Adriana Maria Simão da Silva (org.) Vidas em romaria, Ed UECE, Fortaleza 2016.
-Pe. Neri Feitosa, Análise juridica das Pastorais de Dom Joaquim sobre o Padre Cícero e o milagre de Juazeiro, Canindé 2005.
-Carlos Alberto Tolovi, Mito, religião e política: Padre Cícero e Juazeiro do Norte, Editora Primas, Curitiba 2017.
-Maria do Carmo Pagan Forti, Padre Cícero e Dom Fernando: uma relação que deu certo, edição da autora, Juazeiro 2013.
-Pe.José Oscar Beozzo, Pe. Cicero nos textos e no contexto do seu tempo. Anais do II Simpósio Internacional de 12 de outubro de 2004.
-Pe. José Oscar Beozzo, Uma cronologia comparada da vida do Pe. Cícero com os eventos eclesiásticos e civis de seu tempo, pesquisa inédita, São Paulo 2004.