Não é verdade que vivemos tempos pós-utópicos. Aceitar esta afirmação implica sustentar uma representação reducionista da realidade e do ser humano. Este não é apenas um dado que está ai fechado sobre si mesmo, desvinculado da história sempre aberta para frente.
Além de real, ele é também um ser virtual. Esconde dentro de si virtualidades ilimitadas que podem irromper e concretizar-se. É um ser de desejo, portador do princípio esperança (Bloch), permanentemente insatisfeito e sempre se propondo novas iniciativas. No fundo, ele é um projeto infinito, à procura de um obscuro objeto infinito que lhe seja adequado.
É desse transfundo virtual que nascem os sonhos, os pequenos e grandes projetos e as utopias maximalistas e minimalistas. Sem elas o ser humano não veria sentido em sua vida e tudo seria cinzento. Uma sociedade sem sem ideias-forças, sem ideais e sem utopias, como foi visto por Max Weber no final de seu famoso escrito sobre A política como vocação, deixaria de ser sociedade, perderia seu rumo pois afundaria no pântano dos interesses individuais ou corporativos. O que entrou em crise não são as utopias, mas certo tipo de utopias, as utopias maximalistas vindas do passado.
O ocaso das utopias maximalistas
Os últimos séculos foram dominados por utopias maximalistas. Enumeremos as principais. A utopia iluminista que universalizaria o império da razão contra tradições envelhecidas e formas de poder hierarquizado e autoritário. A utopia industrialista de transformar as sociedades com produtos, frutos das múltiplas invenções técnicas. A utopia capitalista de levar progresso material e riqueza para todo mundo. A utopia socialista de gerar sociedades igualitárias e sem classes. As utopias nacionalistas sob a forma do nazifascismo que, a partir de uma nação poderosa, com “raça pura”, redesenharia a humanidade, impondo-se a todo mundo. A utopia cientifista que imagina resolver todos os problemas sociais e ecológicos, especialmente, do aquecimento global pela via das tecnologias mais avançadas como a nanotecnologia e a manipulação da base físico-química que sustenta a vida.
Além destas há atualmente a utopia da saúde total, gestando as condições higiênicas e medicinais que visam a imortalidade biológica ou o prolongamento da vida até a idade das células (cerca de 130 anos). A utopia do Pentágono de “um único mundo e um único império com o espectro da total dominação”(Moniz Bandeira). A utopia do mercado total que transforma literalmente tudo, até as coisas mais sagradas em negócio e de oportunidade de ganho financeiro (Karl Polanyi). Por fim a utopia do ambientalismo radical que sonha com uma volta à Terra virgem e o ser humano totalmente fundido nela e outras.
Essas são as utopias máximalistas. Propunham o máximo. Muitas deles foram impostas com violência ou geraram violência contra seus opositores.
Temos hoje distância temporal suficiente para nos confirmar que estas utopias maximalistas frustraram o ser humano. Entraram em ocaso e perderam seu fascínio. Alguns chegam a falar da “sociedade do cansaço” (Byung-Chul Han, filósofo coreano vivendo em Berlim, 2016) e da vigência dos tempos pós-utópicos.
Mas o pós se refere somente a este tipo de utopia maximalista. Elas deixaram um rastro de decepção e de depressão, especialmente, a utopia da revolução absoluta dos anos 60-70 do século passado como a cultura hippy e seus derivados.
Apesar deste ocaso não desapereceu o ímpeto utópico, pois é da essência humana, como ser virtual e projeto infinito, alimentar desejos, projetar sonhos e cultivar utopias viáveis. Se as utopias maximalistas estão conhecendo um descenso, por outra parte, verifica-se um ascenso das utopias minimalistas(L Zoja, Utopie minialiste Milão 2013). Elas não se contentam com o tipo de mundo que temos e se propõem melhorá-lo, mesmo quando não nos é concedido superá-lo. As utopias minimalistas, como veremos, recusam a resignação, fortalecem a resiliência e creem tornar a sociedade, no dizer de Paulo Freire, “menos malvada, onde não seja tão difícil o amor”. Para isso importa resgatar as boas razões da utopia.
O resgate da utopia
O resgate se opera num contexto internacional e nacional extremamente complexo, diria, ameaçador. Na verdade, vivemos no olho de uma crise civilizacional de proporções planetárias. Os princípios e valores que constituiram e deram coesão às sociedades modernas como o princípio democrático, o respeito dos direitos humanos, da natureza e da Mãe Terra, a soberania das nações, o não uso da violência e da guerra para resolver conflitos sociais, a ilegitimidade das guerras preventivas, a hospitalidade para com os imigrantes, o cuidado com a coisa comum, particularmente, com os bens e serviços que garantem a continuidade da vida: tudo isso foi posto em xeque ou simplesmente é violado sem qualquer punição de órgãos mundiais como a ONU. Este cenário vem atualmente agravado pela elevação de Donald Trump à presidência dos USA. Audazmente assume políticas sociais e relações internaconais altamente arriscadas que podem afetar o futuro do sistema Terra e do sistema vida.
Toda crise oferece chances de transformação bem como de riscos e de fracassos. Na crise, medo e esperança, expressões de raiva e de violência real ou simbólica se mesclam com conclamçãoes à tolerância e ao diálogo, de modo particular pelo Papa Francisco, especialmente neste momento crítico da sociedade nacional e, no plano internacional, devido aos 40 focos de guerra e ao fato de que já estamos dentro do aquecimento global.
Precisamos suscitar esperança. Ela se expressa na linguagem da utopia. Esta por sua natureza, nunca vai se realizar totalmente. Mas elas nos mantém caminhando. Isso o expressou belamente Eduardo Galeano (1940-2015):
“A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.”
Algo semelhante o expressou o irlandês Oscar Wilde:” ”Um mapa do mundo que não inclua a utopia não é digno de ser olhado, pois ignora o único território em que a humanidade sempre atraca, partindo em seguida, para uma terra ainda melhor”.
No Brasil acertadamente observou o poeta Mário Quintana: “Se as coisas são inatingíveis…ora!/Não é motivo para não querê-las/Que tristes os caminhos e se não fora/ A mágica presença das estrelas”.
A utopia não se opõe à realidade, antes pertence à ela, porque esta não é feita apenas por aquilo que é dado, mas por aquilo que é potencial e que pode um dia se transformar em dado. A utopia nasce deste transfundo de virtualidades presentes no próprio universe em evolução, na história, na sociedade e em cada pessoa.
O filósofo Ernst Bloch cunhou a expressão principio-esperança. O princípio-esperança é o inesgotável potencial da exitência humana e da história que permite dizer não a qualquer realidade concreta, às limitações espácio-temporais, aos modelos políticos e às barreiras que cerceiam o viver, o saber, o querer e o amar.
O ser humano diz não porque primeiro disse sim : sim à vida, ao sentido, à uma sociedade com menos corrupção e mais justa, aos sonhos e à plenitude ansiada. Embora realisticamente não entreveja a total plenitude no horizonte das concretizações históricas, nem por isso ele deixa de ansiar por ela com uma esperança jamais arrefecida. Tal dinamismo pertence à natureza do ser humano, inteiro mas não complete e sempre em busca de novos horizontes, de novas experiências e de novas formas de convivência.
Jó, quase nas vascas da morte, podia gritar a Deus:”mesmo que Tu me mates, ainda assim espero em Ti”. O paraiso terrenal narrado no Gênesis 2-3 é um texto de esperança. Não se trata do relato de um passado perdido e do qual guardamos saudades, mas é antes uma promessa, uma esperança de futuro ao encontro do qual estamos caminhando. Como comentava Bloch: “o verdadeiro Gênese não está no começo mas no fim”. Só no termo do processo da evolução serão verdadeiras as palavras das Escrituras: ”E Deus viu que tudo era bom e muito bom”. Enquando evoluimos nem tudo é bom mas é apenas perfectível. A utopia deslancha esta energia na busca do novo e do ainda não ensaiado.
Anunciar tal esperança no atual contexto sombrio do Brasil e do mundo não é irrelevante. Transforma a eventual tragédia da política, da Terra e da Humanidade devido à dissolução social e às ameaças sociais e ecológicas em um crise purificadora.
Vamos fazer uma travessia perigosa, mas a vida será garantida e o Brasil bem como o Planeta ainda se regenerarão e encontrarão um caminho que nos abra um futuro esperançador.
Os grupos portadores de sentido, as filosofias, os partidos com propostas sociais bem fundadas e principalmente as religiões, os caminhos espirituais e as Igrejas cristãs devem proclamar de cima dos telhados semelhante esperança.
Para os cristãos, a grama não cresceu sobre a sepultura de Jesus. A partir da crise da sexta-feira da crucificação, a vida triunfou. Por isso a tragédia não pode escrever o último capítulo da história nem do Brasil nem da Mãe Terra. Este o escreverá a vida em seu esplendor solar.
A emergência das utopias mininalistas
As utopias maximalistas em seu ocaso abriram espaço para outro tipo de utopias, as minimalistas. São aquelas que, no dizer de Paulo Freire, realizam o “viável posssível”.
Nota-se por todas as partes, a urgência latente de utopias do simples melhoramento do mundo, já que o sistema de dominação imperial mostra, embora em crise interna, ainda grande coesão.
Tudo o que nos entra pela muitas janelas de informação nos levam a perceber: assim como o mundo e o Brasil estão não podem continuar. Importa mudar e se não der, ao menos, diminuir a taxa de iniquidade generalizada e melhorar.
Não pode prosseguir a absurda acumulação de riqueza como jamais houve na história (85 mais ricos possuem rendas correspondentes a 3,57 bilhões de pessoas, como denunciava a ONG Oxfam intermón em janeiro de 2015 em Davos). J. Stiglizt, prêmio Nobel de economia, revelou em novembro de 2016 que a acumulação chegou a um ponto que 1% de plurimilhardários controla cerca de 80% dos fluxos economico-financeiros mundiais. Para esses, o sistema econômico-financeiro não está em crise; ao contrário, oferece chances de acumulação como nunca antes na história devastadora do capitalismo. Há que se pôr um freio à verocidade produtivista que assalta os bens e serviços da natureza em vista da acumulação ilimitada, produz gases de efeito estufa que alimentam o aquecimento global. Caso não possa ser detido, poderá produzir fatalmente um armagedon ecológico.
A situação economico-social do Brasil é, de certa forma, vergonhosa. Segundo dados recentes do IPEA revelados pelo seu ex-presidente deposto pelo governo de Michel Temer, Jessé Souza, (2016), apenas 71.440 (0,05% da população) de super ricos controlam grande parte das riquezas e do sistema financeiro do país. É o que denuncia nossa maior chaga: a desigualdade social, das maiores do mundo que; em termos ético-políticos significa uma perversa injustiça social.
As utopias minimalistas, a bem da verdade, são aquelas que foram implementadas pelos dois governos do PT sob Lula e Dilma Rousseff e seus aliados com base popular: garantir que o povo coma duas ou três vezes ao dia, pois o primeiro dever de um Estado é garantir a vida dos cidadãos. Tal política não configura assistencialismo mas humanitarismo em grau zero: são os projeto “bolsa família”, “minha casa-minha vida”, “luz para todos”, o aumento significativo do salário mínimo, o “PROUNI” e o “FIES” que permitiram o acesso aos estudos superiores a estudantes socialmente menos favorecidos, os “pontos de cultura” e outros projetos populares que não cabe aqui elencar.
Para as grandes maiorias são verdadeiras utopias mínimalistas viáveis: receber um salário que atenda as necessidades da família, ter acesso à saúde, mandar os filhos à escola, conseguir um transporte coletivo que não lhes tire tanto tempo de vida, contar com serviços sanitários básicos, dispor de lugares de lazer e de cultura e com uma aposentadoria digna para enfrentar os achaques da velhice.
A consecução destas utopias minimalistas cria a base para utopias mais altas: aspirar a que os povos se abracem na fraternidade, que não se guerreiem, se unam todos para preservar este pequeno e belo planeta Terra, sem o qual nenhuma utopia maximalista ou minimalista pode ser projetada.
O primeiro ofício do ser humano é viver livre do reino das necessidades e gozar um pouco do reino da liberdade. E por fim poder dizer: “valeu a pena esperar tantos anos, valeu a pena a luta, valeu a pena a participação do povo na definição de seu próprio destino.
Rumo a uma nova utopia para o Brasil
A utopia Brasil só pode ser pensada no interior de uma utopia maior, aquela da Casa Comum, o planeta Terra. Ddada a crise ecológico-social global, irrompe em primeiro plano, a alternativa improstergável: ou mudamos de padrão global de organização do sistema políco-social-econômico ou vamos ao encontro do pior. Desta vez não há uma Arca de Noé que salve a alguns e deixa perecer os demais. Ou nos salvamos todos ou pereceremos todos.
É o sentido maior e ultimo da encíclica do Papa Francisco “Laudato Si: como cuidar da Casa Comum”(2015). Ele alimenta a esperança de que poderemos superar esta crise rumo a uma Terra salvaguardada e realmente feita Casa Comum.
Trata-se de definir um novo paradigma civilizacional, vale dizer, estabelecer uma relação diferente para com a natureza e para com a Terra, não à base da exploração de seus bens e serviços em vista da acumulação ilimitada, mas à base da sinergia, do sentido de pertença e do respeito por seus ciclos e cuidando de todas as condições físico-químicas que garantem a sustentabilidade da vida.
Aqui se faz necessário articular três eixos:
– a projeção de uma utopia global, um sonho maior que devolva a esperança, galvanize os ânimos para participar nas mudanças necessárias;
– Identificar movimentos e forças sociais que se apresentam como os sujeitos principais, não exclusivos, desta utopia;
– elaboração de teorias empíricas e modelos que mediatizem a utopia e ponham em marcha o novo paradigma. É nesse nivel que se dão as mudanças concretas como concretização da utopia e não como remontagem do velho e passado em nova roupagem.
O novo sonho da Terra deve estar, o mais possível, livre da impregnação do velho paradigma. Este tinha como centralidade o poder, exercido como dominação sobre a natureza e sobre os outros. Era a vontade de conquista, o paradigma Alexandre Magno ou Hernan Cortes. Este paradigma, como observou acertadamente o renomado biólogo Edward Wilson, fez com que o “éden se transformasse num matadouro e o paraiso ocupado num paraiso perdido”(O futuro da vida Campus 2002,121). Vai mais longe ao asseverar que”o homem até hoje tem desempenhado o papel de um assassino planetário, preocupado apenas com sua própria sobrevivência a curto prazo; já sacrificamos boa parte da biosfera; a ética da conservação e do cuidado, quase sempre chegou tarde demais, timidamente demais para salvar as formas de vida mais vulneráveis”(Id ibd. 121).
Agora a nova centralidade deve ser conferida à vida em sua imensa diversidade. A vida entendida como auto-organização da matéria em altíssimo grau de complexidade e de interação com o todo à sua volta e a vida humana, consciente e livre como o ponto mais avançado e complexo do processo evolucionário. Ou numa leitura espiritualista, a vida como o supremo dom de Deus. O paradigma será de Francisco de Assis e Chico Mendes, paradigma do cuidado, da confraternização universal e da sinergia com a natureza.
A vida mostra uma unidade sagrada na diversidade de suas manifestações. Todos os seres vivos, da bactéria originária de 3,8 bilhões de anos atrás, passando pelas algas, pelas florestas, pelos dinossauros, pelos colibris, pelos cavalos até chegar a nós humanos possui o mesmo alfabeto biológico de base: os 20 aminoácidos e as quatro bases fosfatadas. Por isso todos somos parentes, primos e irmãos e irmãs.
O que sabemos empiricamente pela ciência depois que Crick e Dawson descodificaram o código genético nos anos 50 do século passado, intuiu-o São Francisco de Assis em sua mística cósmica ao chamar a todos os seres, as flores, aos pássaros e aos animais de irmãos e irmãs. Formamos, pois, uma imensa comunidade de vida.
Cuidar da vida, fazer expandir a vida, entrar em comunhão e sinergia com toda a cadeia de vida e celebrar a vida: eis o sentido do nova coexistência dos seres humanos sobre a Terra, também entendida como Gaia, super-organismo vivo e nós humanos como aquela porção de Gaia que sente, pensa, ama e venera.
A centralidade da vida implica concretamente assegurar os meios da vida como o trabalho, a saúde, a moradia, a segurança e a educação.
Todos os seres humanos deverão ter acesso garantido a esses bens fundamentais. Eis aqui, a nova racionalidade humanitarian que conferirá um sentido ético a todos os saberes e a todas as tecnologias.
Se estandartizarmos para toda a humanidade os avanços da tecnociência já acançados, permitiríamos que todos gozassem dos serviços essenciais com qualidade que hoje somente setores privilegiados e opulentos têm acesso. Quer dizer, todos teriam alimentos saudáveis, um excelente serviço de saúde, moradias dignas e uma educação de qualidade. Até hoje o saber era poder a serviço da acumulação sem limites que dá orgiem a desigualdades, portanto, a serviço do sistema imperante. Agora, após a grande crise, bem poderíamos fazer uma moratória de investigação e de invenção em favor da democratização do saber e das invenções já acumuladas pela civilização, beneficiando especialmente os mais desprotegidos.
O trabalho não seria mais uma mercadoria, ao contrário, resgataria seu verdadeiro significado como dimensão essencial do ser humano que exerce sua criatividade, plasma a sua vida, molda a natureza para ser um habitat benfazejo. Liberaria o tempo para as atividades propriamente humanas de criar, de conviver, de criar significações pelas artes, pelo cultivo do pensamento e da espiritualidade. A Terra poderia se transformar no lar e na pátria da verdadeira identidade humana.
Colocar a vida como eixo articular abre espaço para a celebração, para a descoberta do encantamento do mundo em sua inenarável diversidade.
Conflitos sempre os haverá, pois pertencem à condition humaine, sapiens e demens, sim-bólica e dia-bólica. Mas haverá formas de enfrantamento não destrutivas nem repressivas. A dimensão de luz potenciada limitará os efeitos da dimensão de sombras, o lado sapiens do ser humano fará que o lado demens não ganhe hegemonia.
Os portadores da utopia
Desta vez todos, dado o caráter global e urgente da utopia, são os portadores da utopia. Mas há os atores principais, aqueles que já agora, antes da crise terminal, incorporaram o sonho de um outro mundo possivel. São os movimentos sociais mundiais que ganharam visibilidade no Forum Social Mundial, realizado em várias cidades do mundo. Sem esses sujeitos históricos a utopia evanesce em fantasia. O Papa Francisco em seus três encontros com os movimentos sociais mundiais(dois em Roma e um em Santa Cruz de la Sierra na Bolívia desafiou-os serem os protagonistas do novo mundo. Não há que esperar nada de cima, pois é sempre mais do mesmo. Devem eles mesmos ensaiar outras formas de habitar a Casa Comum, de produzir e de consumir, estabelecenco uma nova relação de sinergia com a natureza e de cuidado para com a Terra.
O mesmo vale para o caso do Brasil. Sem os movimentos sociais populares, articulados entre si, formando uma poderosa força político-social, não se implantará a utopia Brasil diferente.
Contornos da utopia Brasil
A utopia de um Brasil diferente radicaliza características da cultura brasileira que nunca ganharam hegemonia e que ficaram sem serem aproveitadas na moldagem do Brasil. Elas funcionam como tijolinhos na construção da nova figura do Brasil. Elenco algumas que se encontram em vários autores, especialmente no antropólogo Roberto da Matta em seus vários textos sobre o cotidiano do brasileiro, de suas festas, do carnaval, do futebol e outras.
– riqueza ecológica do Brasil. Abrigamos aqui a maior biodiversidade do planeta: 60.000 espécies de plantas, 2,5 milhões de espécies de artrópodos (insetos, aranhas, centopéias etc), 2.000 espécies de peixes, mais de 300 de mamíferos sem falar no número inimaginável de micro-organismos, responsáveis principais pelo equilíbrio ecológico. Na sociedade de informação que se está consolidando essa biomassa representará riqueza maior do que representou o carvão e o petróleo na civilização industrial.
–A água potável se trasnformou no recurso natural mais escasso da natureza. Cerca de 3% de toda a massa hídrica do planeta é constituida de água doce sendo que menos de 1% é potável. O Brasil é a potência das águas, capaz de saciar as sedes do mundo inteiro. Aqui está 13% de toda a água doce do mundo acessível.
-Mais e mais no mundo se procura evitar a quimicalização artificial dos alimentos e das medicinas. O Brasil nos seus vários ecosistemas apresenta uma riqueza natural sem precedentes no mundo. A biomassa e outras fontes de energia alternativa farão o Brasil uma nação decisiva para a sustentabilidade da Terra.
-cutura relacional: A persistente dominação impediu entre nós a constituição de uma sociedade civil sustentável e obrigou a permanente negociação e a conciliação dos opostos. Desenvolveu-se no Brasil uma cultura da relação e das alianças que amaciam a dureza da dominação pela via da política e da economia através dos elos de família, das amizades, do compadrio, das malandragens e dos jeitinhos. Cabe enfatizar, como o fez magistralmente o historiador José Honório Rodrigues (Conciliação e Reforma no Brasil:um desafio histórico-politico, Rio 1965) que a conciliação de classe feita entre os poderosos e sempre de costas para o povo, criou uma tradição política que culminou com um presidencialismo de coalizão entre vários partidos, método que abriu o caminho para uma vasta corrupção, a partir dos anos 2013 desvendada como nunca antes em nosssa histõria.
Via de regra evitaram-se os radicalismos e se preferiu o caminho do meio, se buscou a mediação, se optou pelo gradualismo e se fez muita conversa. As várias lógicas, do público (as normas e leis universais para os indivíduos), do privado (a informalidade e cordialidade entre as pessoas e as famílias) e do mágico-religioso (as festas,os ritos e as graças alcançadas) se inter-relacionam permitindo o ser humano movimentar-se sem grandes violências destruidoras. A mestiçagem de nosso povo pela qual todas as etnias se relacionaram para além dos limites de classe e da hierarquia foi fruto desta cultura relacional. O Brasil por essa sua maneira de somar, juntar, relacionar e sintetizar poderá agora apresentar uma sociedade mais participativa e inclusiva e oferecer um contributo indispensável ao proceso de globalização.
– jeitinho como forma de navegação social. O jeitinho é uma criação original da sociedade brasileira. É a forma habilidosa e pacífica de combinar os interesses pessoais com a rigidez da norma; é o modo de contrabalancear a correlação desigual de forças, tirando vantagens da fraqueza; é a maneira de conciliar todos os interesses sem que ninguém saia prejudicado. Desta forma se junta lei com a realidade social diária; permite-se uma navegação social tortuosa mas pacífica (Roberto da Matta, O que faz o brasil Brasil, Rocco, Rio de Janeiro 1986, 93-105).
Essa característica nacional é extremamente útil e até imprescindível na nova sociedade, tambem na geosociedade nas quais tantos interesses se sobrepõem, opõem e contrapõem. Pelo jeitinho eles se compõem e se articulam numa totalidade maior que deve incluir a todos. Sem o jeitinho, a dialogação permanente, a busca da junção entre o “não pode” e o “ pode” dificilmente se chegará a uma ordem social dinâmica e humanizada. Não bastam leis justas e normas que visam a equidade. Elas contemplam sempre o universal. O ser humano, entretanto, é pessoa, nó-de-relações, sempre complexa, cheia de propósitos e singular. O jeitinho é a forma de conciliar o universal com o singular em benefício da fluidez e da leveza da vida social e pessoal.
–Cultura multiétnica e pluri-religiosa. Somos um país para o qual afluiram 60 etnias diferentes; aqui elas se miscigenaram sem maiores preconceitos, fazendo do mulato a cristalização mas perfeita do encontro das trës etnias matriciais de nossa brasilidade: o branco, o negro e o índio (Darcy Ribeiro, O povo brasieiro, 1998). Ele representa a lógica prevalente da mentalidade brasileira que é a busca equidistante dos extremos, a associação ao intermediário e conciliador. Esta experiência cultural serve de base para uma nova humanidade globalizada, feita da coexistência e convivência de toda as tribos da Terra. Ninguém melhor que Luiz Gonzaga de Souza Lima, em seu magistral livro A rerfundação do Brasil: rumo à sociedade biocentrada (RiMa,São Bernardo 2011) colocou no centro do refazimento de um Brasil soberano e autônomo aquilo que mais nos caracteriza em termos mundiaIS, a riqueza e diversidade de nossa cultura. A partir da cultura, crê Souza Lima, o Brasil poderá ser um nicho gerador de novas utopias e sonhos com a possibilidade real de realizá-los em harmonia com a Mãe Terra e com toda a rica comunidade de vida.
Junto com o caráter multicultural e multiétnico de nossa sociedade vigora também o carátar pluri-religioso. As religiões e as várias expressões místicas e espirituais convivem com relativa paz e tolerância, apesar de certo fundamentalismo de grupos neopentecostais. Mas nunca conhecemos guerras religiosas. Não somos fechados e dogmáticos, mas naturalmente abertos e ecumênicos na convicção de que todas as religiões são portadoras de uma bondade básica, vinda do próprio Deus e conduzindo para o coração de Deus.
Esses ensaio de diversidade na unidade pode constituir um referencial ao processo de planetização. O Brasil pode mostrar como as religiões mais diversas podem aqui florescer sem se hostilizarem fundamentalmente e todas elas servirem a alimentar uma aura de transcendência, tão necessária ao sentido da vida humana e da história.
–Criatividade do povo brasileiro. A criatividade pertence à essência do ser humano pois ele não é um ser que nasce pronto, mas deve sempre se fazer, exercendo sua liberdade e sua criatividade. Criatividade supõe capacidade de improvisação, descoberta de saídas supreendentes e espontaneidade na ruptua de tabus ligados à tradição ou ao senso-comum dominante. Um favelado brasileiro é muito mais criativo que qualquer cidadão europeu que frequentou a universidade e se qualificou professionalmente, mas se aferrou às normas e à lógica do caminho já convencionado. Ele inventa mil formas de dar um jeito na vida, resistir, negociar, protelar e sobreviver, mantendo ainda o sentido de humor e de festa.
Essa cratividade se mostra nas artes, na música, nas imagens de propaganda e marketing. Bem dizia Celso Furtado: “uma sociedade só se transforma se tiver capacidade para improvisar;…ter ou não acesso à criatividade, eis a questão” (O longo amanhecer, Paz e Terra, Rio de Janeiro 1999,79 e 67). Nunca nos faltou capacidade de improvisação faltou-nos vontade dos governos de valorizar e aproveitar do enorme potencial criativo do povo e a capacidade de sua canalização racional em benefício de todos. Agora no novo paradigma, tudo isso ganha centralidade.
No mundo globalizado faz-se urgente a criatividade para dar uma moldura coerente e nova a esse fenômeno inédito. Há o risco de que seja enquadrado nos moldes do velho paradigma. A alta criatividade do povo brasileiro, sua inventividade e capacidade de improvisação podem estimular uma globalização mais dinâmica e flexível.
–A aura mística da cultura brasileira. A mística faz crer que existe um outro mundo dentro deste mundo e que o invisível faz parte do visível. E estas realidades se manifestam e mostram sua força na vida cotidiana pois ajudam a enfrentar as dificuldades, os problemas da família, particularmente as questões de saúde e em geral da vida. Finalmente a religiãao confere um sentudo plenificador à história tão cheia de absurdos, sofridos na própria pele. Deus, seus santos, as divindades afro, as energias positivas e engativas são atores que iinfluenciam a história. Há que tomá-los a sério. Daí a aura de reverência e de respeito que pervade as dimensões da vida ligadas ao sagrado e ao religioso, às festas, às bênçãos, às romarias e às promessas. Crer e embeber as práticas, as artes e a cultura com tal mística significa romper com o mundo da pura razão, da funcionalidade das instituições e da lógica linear para a qual não há e não deve haver surpresas. É abrir espaço para o imprevisto, para a magia e para o “milagre” de que as coisas podem, de repente, mudar e ganhar outra configuração que rasga um horizonte de esperança para a vida humana.
Essa aura mística é fundamental para um processo de um novo Brasil e uma globalização de rosto humano. Ele não pode ser apenas conduzido pela racionalidade instrumental-analítica e pelo discurso dos interesses. Seria demasiadamente pobre e rígida e não respeitaria a vida, sempre contraditória e estruturada como um sistema aberto. Faz-se mister incorporar o exercício da razão emocional, hermenêutica, simbólica e sacramental que dão conta da riqueza do espírito humano e de sua história, agora articulada num nivel global.
A mística permite ao ser humano ancorar-se num último sentido que liga e re-liga todas as coisas a uma Harmonia superior, chamada Deus, Fonte originária de todo o ser. Ele se revela no coração humano na forma de entusiasmo, de um aconchego derradeiro, de sentimento de pertença ao todo e de responsabilidade ética por tudo o que existe e vive. Essa energia em nós é o significa Deus.
Essa dimensão mística, comum ao povo brasileiro, assumida no processo de globalização tornará, seguramente, mais irradiante e esperançador o futuro da Terra e da humanidade.
– O lado lúdico do povo brasileiro. A consequência da criatividade e da mística é a leveza e o humor que marca a cultura brasileira. Há alegria no meio do sofrimento e sentido de festa no meo das tribulações. Isso porque vigora a crença que a vida vale mais que todas as coisas particulares e que essa vida se inscreve sob o arco-iris da benevolência divina. Ela, por pior que seja, vale a pena ser assumida, amada e celebrada. Por isso tudo é motivo para a gozação, o humor e a festa. Tal atmosfera confere um caráter de jovialidade ao modo de ser brasileiro que se revela pelo sentido de hospitalidade e de acolhida das pessoas, especialmente, estrangeiras. Somos orgulhosos do que somos e do que temos mas somos simultaneamente entuasiastas das coisas que vêm de fora. Nunca perdemos a capacidade de nos extasiar e de magnificar diante de qualquer coisa, especialmente nova e inovadora.
Essa dimensão é igualmente necessária ao processo de globalização. Sem senso de humor e sem o lúdico as contradições oneram as relações sociais, os dramas viram tragédias que tolhem a esperança e tiram o sentido da vida.
– Um povo de esperança. Uma virtude é cardeal para a alma brasileira: a esperança. Ela é a última que morre. É por ela que temos a confiança de que Deus escreve direito por linhas tortas. A esperança projeta continuamente visões otimistas. Assim cantam as comunidades eclesiais de base: “virá um dia em que todos, ao levantar a vista, veremos nesta terra, reinar a liberdade”. Agora finalmente, se criaram as condições para reinar a liberdade para todos.
Esta carga utópica ajudará a nova geosociedade reforçar um horizonte utópico imprescindível para a continuidade da aventura humana por esse Planeta azul-branco.
–Brasil a Roma dos trópicos? Com o declínio da hegemonia romano-católica a nivel europeu e por viverem na Amérca Latina mais da metade de todos os católicos e de serem os brasileiros majoritariamente desse credo, sincretizados com outras expressões religiosas e espirituais, pode o Brasil postular ser a nova Roma dos trópicos, aberta, acumênica, espiritual e mísitica. Nas palavras entusiastas de Darcy Ribeiro no entardecer de sua vida: “Na verdade das coisas, o que somos é a nova Roma. Uma Roma tardia e tropical. O Brasil ja é a maior das nações neolatinas, pela magnitude populacional e começa a sê-lo também por sua criatividade artística e cultural…Estamos nos construindo na luta para floresdcer amanhã como uma nova civilização mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma. Mais alegre porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais humanidade. Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província da Terra” (O povo brasileiro, Companhia das Letras, S.Paulo 1995,448-449).
Em suma, a utopia Brasil tem condições de se realizar agora numa fase nova da Terra e da Humanidade.
A religião como fonte de utopias de resgate e salvação
Fontes geradoras de utopias são as religiões. Isso porque elas, no dizer do grande estudioso das formas elementares da religião Émile Durkheim “não são somente um sistema de ideias, mas antes de tudo um sistema de forças…O homem que vive religiosamente experimenta um poder que não conhece na vida comum. São forças que levantam montanhas, que podem dobrar a natureza e seus designios”(apud F.Teixeira, Sociologia da religião,2003, 43-44).
Foi mérito de Glifford Geertz, com sua antropologia simbólica, mostrar que sempre que ocorre uma crise sistêmica e a passagem de um paradigma civilizatório a outro, marcadas por incertezas e ausência de sentido, quem faz a ponte entre ambos os paradigmas e elabora utopias, geradoras de novos horizontes de esperança são as religiões.
Ninguém melhor que o filósofo alemão Ernst Bloch com seus três grossos volumes sobre o “Princípio Esperança” para mostrar a função insubstituível da religião como geradora da esperança. Esperança não com virtude,mas como um princípio, um motor que sempre atua na história e nas pessoas projetando sonhos, visões, utopias salvadoras. Conhecida é sua frase:”Onde há religião, aí há esperança”.
Hoje predomina o convencimento de que fator religioso é um dado antropológico do fundo utópico do ser humano. Depois que a maré crítica da religião feita por Marx, Nietzsche, Freud, Popper e Dawkins retrocedeu, podemos dizer que os críticos não foram suficientemente críticos.
No fundo, todos eles laboraram num equívoco: quiseram colocar a religião dentro da razão, o que fez surgir todo tipo de incompreensões e contradições. Estes críticos não se deram conta de que o lugar da religião não está na razão, embora possua uma dimensão racional, mas na inteligência cordial, na emoção profunda, no sentimento oceânico, naquela esfera do humano onde emergem os sonhos e as utopias.
Bem dizia Blaise Pascal, matemático e filósofo no famoso fragmento 277 de seus “Pensées: ”É o coração que sente Deus, não a razão”. Crer em Deus não é pensar Deus mas sentir Deus a partir da totalidade de nosso ser. A religião é a voz de um consciência que se recusa a aceitar o mundo tal qual é, sim-bólico e dia-bólico, perpassado por guerras e poucos momentos de paz. Ela se propõe transcendê-lo, projetando visões de um novo céu e uma nova Terra e de utopias que rasgam horizontes ainda não vislumbrados.
A antropologia em geral e especialmente a escola psicanalítica de C. G. Jung veem emergir a religião das camadas mais profundas da psiqué. Hoje sabemos que a estrutura em grau zero do ser humano não é razão (logos, ratio) mas é emoção (pathos, eros e ethos).
A pesquisa empírica de David Golemann com sua Inteligência emocional (1984) veio confirmar o que certa tradição filosófica, apoiada em Platão, Agostinho, Boaventura, Pascal, chegando a Freud, a Heidegger, Damásio e Meffessoli, Cortina, Adela Cortina, Muniz Sodré e eu mesmo (Direitos do coração, Paulus 2016), afirmava. A mente é incorporada (embodied mind: veja Varela 1997 The embodied mind: Cognitive Science and Human Experience), quer dizer, a inteligência vem saturada de emoções e de afetos. É nas emoções e nos afetos que se elaboram o universo dos valores, da ética, das utopias, dos sentidos existenciais e da religião.
É deste transfundo que emerge a experiência religiosa. Segundo L. Wittgenstein, os fatores místico e religioso nascem da capacidade de extasiar-se do ser humano. “Extasiar-se não pode ser expresso por uma pergunta. Por isso não existe também nenhuma resposta”(Schriften 3, 1969,68). O fato de que o mundo exista é totalmente inexprimível. Para este fato “não há linguagem; mas esse inexprimível se mostra; é o místico”(Tractatus logico-philosophicus, 1962, 6, 52). E continua Wittgenstein:”o místico nao reside no como o mundo é mas no fato de que o mundo é”(Tractaus, 6,44). “Mesmo que tenhamos respondido a todas as possíveis questões científicas, nos damos conta de que nossos problemas vitais nem sequer foram tocados” (Tractatus, 5,52).
“Crer em Deus”, prossegue Wittgenstein, “é comprender a questão do sentido da vida. Crer em Deus é afirmar que a vida tem sentido. Sobre Deus que está para alem deste mundo não podemos falar. E sobre o que não podemos falar, devemos calar”(Tractatus,7).
A limitação de todo espírito científico, mesmo o praticado pelas ciências da religião, reside nisso: ele não tem nada sobre o que calar. As religiões quando falam é sempre de forma simbólica, analogica, evocative e auto-implicativa. No fim, terminam no nobre silêncio, no dizer de Buda, ou então usam a linguagem simbólica da arte, da música rito, do jogo e da dança.
Hoje, cansados pelo excesso de racionalidade, de materialismo e consumismo, estamos assistindo a volta do religioso e do místico. Pois nele se esconde o invisível que é parte do visível e que pode conferir uma nova esperança aos seres humanos.
Concluo com uma frase do grande sociólogo e pensador no termo de sua monumental “Formas elementares da vida religiosa”(em português 1996): “Há algo de eterno na religião, destinado a sobreviver a todos os símbolos particulares nos quais o pensamento religioso sucessivamente se desenvolveu”. Porque sobrevive aos tempos, a religião sempre será uma das referências maiores dos seres humanos e uma fonte inesgotável de esperança.
O essencial do Cristianismo não reside em afirmar a encarnação de Deus. Outras religiões também o fizeram. Mas é afirmar que a utopia (aquilo que não tem lugar) virou eutopia (um lugar bom). Em alguém, não apenas a morte foi vencida, o que seria muito, mas ocorreu algo maior: todas virtualidades escondidas no ser humano, explodiram e implodiram. Jesus de Nazaré é o “Adão novissimo” na expressão de São Paulo (1Cor 15,45), o homem abscôndito agora revelado. Mas ele é apenas o primeiro dentre muitos irmãos e irmãs; nós seguiremos a ele, completa São Paulo. Nós mesmos não participaríamos dessa utopia benaventurada se também a humanidade, a Terra e o próprio universo não tivessem parte. Eles serão transfigurados para serem o corpo de Deus(cf. L Boff, Cristianismo: o mínimo do mínimo, Vozes 2013).
Portanto, o nosso futuro é a transfiguração do universo e tudo o que ele contem, especialmente da vida em plenitude e não o pó cósmico. Talvez essa seja a única grande utopia maximalista, para além da qual não poderíamos ir.
Leonardo Boff, 1938, doutor em flosofia e teologia. Dr. h.c. em teologia pela Universidade de Lund e em política pela Universidade de Turin e de outras. Representante e co-redator da Carta da Terra, portador do Prêmo Nobel Alternativo da Paz pelo parlamento sueco e autor de mais de 90 livros em várias áreas da ciências humanísticas.