Talvez um dos pontos mais positivos da exortação pós-sinodal “Amoris Laetitia” seja o fato de, diferente de outros documentos, nele aparece a Igreja não apenas apontando os erros alheios, mas também reconhecendo os próprios. Esse tom de humildade e autocrítica é de uma beleza ímpar e muito mais atraente do que discursos acusadores que antes tiveram lugar. É isso que vamos perceber no documento quando este fala do sacramento do matrimônio.
Em nenhum momento o texto da exortação diminui, minimiza ou nivela por baixo a vocação grande e bela de duas pessoas que desejam se unir por causa do amor que experimentam mutuamente. Trata-se de uma vocação que perpassa toda a história do povo de Deus, desde o Antigo Testamento. Se olhamos para a caminhada do antigo Israel, vemos que a família é o modo corrente e excelente pelo qual o povo eleito se organiza. As pessoas são vistas dentro do escopo de relações familiares: são filhos de alguém, sabem o que Deus disse e fez pelo povo porque seus pais lhes contaram, e sobretudo, simbolizam sua origem em um casal, um primeiro casal: Adão, feito da terra e Eva, a mãe dos viventes.
Depois disso são constantes as referências a Abraão, que se casou com Sara; a Isaac, que conheceu sua mulher Rebeca dentro da tenda; a Jacó, que trabalhou sete anos nas terras de Labão por amor a Raquel, que desejava como sua esposa. No Novo Testamento, as genealogias dão início à história de Jesus, o Messias, que sendo filho de José e Maria era da casa de David (ou seja, da família) e como tal era reconhecido.
Assim, a Igreja se preocupa com as circunstâncias que perpassam o mundo atual, temendo pela seriedade do matrimônio. Ao analisar a realidade, o Papa, que assina a exortação resultante do recente Sínodo, ressalta todos os elementos que hoje ameaçam o matrimônio e a família: a “cultura do provisório” – que instaura uma impressionante rapidez no movimento com que as pessoas passam de uma relação afetiva para outra -, em sintonia com outros pensadores contemporâneos, como Zygmunt Bauman, denuncia os amores líquidos que se fazem e se desfazem com um simples clique do mouse do computador. Adverte igualmente para “o medo que desperta a perspectiva de um compromisso permanente”; a falta de gratuidade das relações “que medem custos e benefícios e se mantêm apenas se forem um meio para remediar a solidão, ter proteção ou receber algum serviço”.
A reificacao do outro, transformando-o em coisa, em objeto com fins utilitários, leva a encarar a união como a posse de um objeto, do qual se usa enquanto serve, satisfaz, excita. E quando baixa o nível de excitação, que é como uma droga sem a qual não se pode viver, descarta-se a pessoa reificada, que passou a ser um estorvo. E parte-se para novas aventuras. Usar e jogar fora, gastar e rasgar quando ficou velho, sugar e espremer enquanto dá suco, depois jogar o bagaço fora.
Se é bela a imagem de um jovem casal trocando alianças e comprometendo-se em um amor para toda a vida, creio que mais belo ainda é ver um casal de idosos andando de braço dado, um apoiando e ajudando o outro(a), o(a) outro(a) sempre atento(a) às necessidades e desejos do companheiro(a) e vendo como pode supri-las. A “Amoris Laetitia” chama a atenção para esta realidade. Convida a ela. Convoca a sua experiência e prática.
Porém, não para aí. Reconhece humilde e realisticamente que muito das dificuldades que hoje enfrentam as novas gerações para entrar no compromisso do matrimônio se deve, em parte, a uma pastoral matrimonial não adequada aos nossos tempos. O Papa afirma que devemos “reconhecer que, às vezes, a nossa maneira de apresentar as convicções cristãs e a forma como tratamos as pessoas ajudaram a provocar aquilo de que hoje nós lamentamos, e nos convém uma salutar reação de autocrítica.”
Refere-se o Pontífice a uma visão do matrimônio e da vida conjugal muito marcada por uma concepção sacrificial e dolorista que não permitiu que a beleza do amor, do gozo, do prazer e da alegria encontrasse seu lugar no proscênio eclesial.
“… Muitas vezes – diz o texto – apresentamos de tal maneira o matrimônio que o seu fim unitivo, o convite a crescer no amor e o ideal de ajuda mútua ficaram ofuscados por uma ênfase quase exclusiva no dever da procriação.” E segue: “ Outras vezes, apresentamos um ideal teológico do matrimônio demasiado abstrato, construído quase artificialmente, distante da situação concreta e das possibilidades efetivas das famílias tais como são. Esta excessiva idealização, sobretudo quando não despertamos a confiança na graça, impediu que o matrimônio fosse mais desejável e atraente; muito ao contrário. ”
Que transparência e quanta verdade! Só nos resta agradecer aos padres sinodais e a Sua Santidade Francisco pela simplicidade com que reconhecem suas falhas. Ai já está meio caminho andado para corrigi-las. Seguramente este tom de humildade, de contrição mesmo, ajudará muitíssimo a que o matrimonio volte a ser um ideal primeiro na vida das jovens gerações que buscam a felicidade e o amor de coração sincero.
Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão” (Edusc)