Comecemos com a expressão evangélica sobre os “sinais dos tempos” (Mt 16, 1-4). Jesus reprova os discícipulos: estes sabem ler os sintomas que prometem chuva ou sol, mas ignoram os sinais vivos da proximidade do Reino de Deus. São bons metereorologistas, dir-se-ia hoje, mas incapazes de dar-se conta da presença do mistério divino na história humana. Atualmente, um dos maiores “sinais dos tempos” se configura como uma estridente contradição: por uma parte, a sociedade moderna ou pósmoderna se diz cada vez mais secularizada, por outra, revela uma enorme e crescente sede de Deus. Por todo lado são visíveis os sinais do retorno do sagrado. Os deuses estão de volta: deuses no plural, o que coloca para nós o desafio de identificar o Deus verdadeiro. Verdadeiro e desconhecido no Mistério da Encarnação. Talvez a imagem por excelência dessa contradição seja a presença, lado a lado, do Papai Noel e de Jesus Menino na estrutura do presépio. O símbolo do mercado, do comércio e das vendas convive rumurosamente com o símbolo do mistério do “verbo que se faz carne”.
- O Verbo se fez carne
A festa do Natal nos insere no Mistério da Encarnação. “O Verbo se fez carne e veio habitar entre nós”, diz o prólogo do Quarto Evangelho (Jo 1, 14), em sua telologia altamente desenvolvida. Que significa “fazer-se carne”? São muitas e muito variadas as respostas. Páginas e páginas, livros e livros, bibliotecas inteiras foram escritas sobre esse mistério de Deus que se faz homem. Em termos aproximativos e bem práticos, podemos traduzir a expressão “o verbo se fez carne” por uma série de palavras: se fez presença, olhar, sorriso, gesto, abraço, visita, compromisso, ação, solidariedade, cura, luz, paz, conforto, empenho, cultivo do outro e dos outros, defesa dos pobres e excluídos – mas tudo isso não passa de interpretações de algo indefinível, indecifrável, indescritível.
Tomemos dois pólos: de um lado, o verbo, a palavra, a promessa, o discurso, a pregação – ou seja, o dizer. De outr lado, a ação, a prática, o desempenho, isto é, o fazer. “Tra ir dire e il fare in mezzo c’è il mare”, diz um provérbo italiano – entre o dizer e o fazer, no meio existe o mar. De fato, todos somos bem conscientes da discrepância que, em cada um de nós, se abre entre o que normalmente dizemos e o que efetivamente fazemos. Em graus diferentes, e no decorrer de sua existência, toda pessoa acaba criando uma distância considerável entre o discurso e a prática. Tal distância, contradição ou incongruência pode ser medida de três formas.
Dizer versus fazer. Neste caso, os dois pólos se separam e se opõem reciprocamente. Verifica-se a máxima a distância entre um lado e outro do espectro. Em termos práticos, o modo concreto de agir não só ignora, mas contradiz frontalmente o programa de boas inteções. Levado ao extremo, esse desencontro entre o “dizer” e o “fazer”, pode degenerar em uma atitude doentia, mórbida, patologicamente esquisofrênica. A ação cotidiana nega o discurso e viceversa. A pessoa vive em dois mundos não apenas distintos, mas adversários um contra o outro. Chega-se, assim, a um “dizer” espiritualizado, sem os pés no chão firme da realidade, que não se traduz em ação concreta; ou a um “fazer” vazio, marcado pelo ativismo estéril, sem raízes profundas no plano divino da salvação, vale dizer na escuta da Palavra.
Dizer mais fazer. Aqui não há contradição. Mas tampouco há coerência autêntica. A pessoa mantém um discurso e uma prática relativamente sintonizados, mas que caminham por linhas paralelas, sem jamais se cruzarem. Entre um pólo e outro, não há confronto e diálogo, apenas uma coexistência mais ou menos pacífica. O “dizer”, longe de intepelar o “fazer” em termos de mudança real, procura acomodar as coisas. Os contrastes se escondem atrás de uma fachada de verniz. Trata-se de uma situação ambígua: se por uma parte é verdade que não se verifica uma aberta contradição, por outra prepara-se um terreno fértil para uma inegável e crescente hipocrisia.
Dizer que se torna fazer. Um pólo busca aproximar-se do outro. Não se trata de um ato mágico ou automático, nem de um salto imprevisto de qualidade. Trata-se, em vez disso, de um esforço, de uma tarefa árdua, empenhativa e notadamente laboriosa. Tarefa de uma vida inteira, a qual, silenciosa e lentamente, modifica o cotidiano de nosso modo de agir. Progressivamente, diminuem as incongruências e contradições. Cresce, por outro lado, um equilíbrio mais autêntico entre o “dizer” e o “fazer”. Mentiras, máscaras e hipocrisias vão, pouco a pouco, dando lugar a uma maior coerência entre as palavras que saem de boca e as ações que desempenhamos. No limite, deparamos com a vida e o testemunho dos santos, dos místicos ou dos grandes homens e mulheres da história. Vale sublinhar que, no que diz respeito à Igreja Católica, é inegável que o Papa Francisco vem fazem um grande esforço no sentido de aproximar o discurso e os gestos concretos.
O prólogo do Evangelho de João apresenta uma perfeita união entre os dois pólos. “O verbo se fez carne” significa que não há oposição, nem soma entre os dois conceitos. Verbo e carne se fundem e se multiplicam na pessoa de Jesus Cristo. A palavra se converte em ação, ou melhor é ação; a promessa da antiga aliança se cumpr com a nova aliança; o “dizer” e o “fazer” formam uma coisa única. Desde os escirtos do Antigo Testamento, aliás, a Palavra de Deus é potência criativa, como lemos no Livro do Gênesis. A palavra profética é poder que denúncia e anúncia, mas também provoca mudanças. Palavra divina é sinônimo de ação transformadora. O mesmo vale para os livros da sabedoria. Esta representa a ação oculta de Deus no interior mesmo ação humana. De forma invisível e misteriosa, Deus deixa suas pegadas, suas digitais, no pergaminho da história.
O resultado é que quanto mais nos aproximamos da ação – do pólo “fazer” – mais nos aproximamos de Deus. E inversamente, quanto mais nos afastamos da ação mais nos afastamos de Deus. “Deus é amor”, diz a Carta de João (1Jo 4,8), o que equivale a dizer que o “verbo se faz carne”. Em sua misteriosa essência, os dois pólos se avizinham, tornando-se serviço e caridade plena no sentido do capítilo treze da Primeira Carta aos Coríntios. “Ele veio para servir e para dar a sua vida como resgate em favor de muitos” (Mc 10, 45).
Nos relatos evangélicos e nos escritos do Novo Testamento em geral, a Palavra de Jesus cura, conforta, liberta, perdoa, abençoa, ressuscita, renova e recria a existência humana. Faz-se carne na exata medida em que se concretiza através de gestos em favor daqueles cuja vida encontra-se mais ameaçada. Palavra e ação se fundem numa prática libertadora, a qual, beneficia, em primeiro lugar, os doentes e indefesos, os pecadores e marginalizados, os pobres e excluídos, os pequenos e últimos. Mais do que proclamar uma Boa Notícia, Jesus se faz Boa Notícia – ainda uma vez, “verbo que se faz carne”.
Mas é no alto da cruz que o Mistério da Encarnação revela todo seu brilho e luminosidade. O “fazer” do Filho cumpre de forma plena e completa o “dizer” do Pai. O verbo se faz carne, a antiga promessa se faz realidade, a palavra se faz ação radical. À maior injustiça humana contra um inocente, Jesus responde com o “Pai perdoai-lhes poque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34)! O perdão torna-se a “vingança” divina, a revelação mais eloquente de sua misericórdia. Revela-se aí não somente o amor infinito de Deus, mas também todas as potencialidades do amor humano.
Na cruz, ao mesmo tempo que esgota a possibilidade humana de amar até as últimas consequências, Jesus mostra-se integralmente “verbo feito carne”. O que, de alguma forma, explica a teologia de João e de Paulo, segundo a qual o Filho preexistia à criação e “por Ele é rodas as coisas foram feitas” (Jo 1,3; Cl 1, 16). O “fazer” de Jesus contêm o “dizer” do Pai, da mesma forma que a semente contém a árvore, com suas folhas, flores e frutos. Aqui somos naturalmente conduzidos ao conceito de kenosis, em que Jesus, “o verbo feito carne”, não se aferra à própria condição divina, mas se humilha a si mesmo, se faz servo, obedecendo até a morte e morte de cruz (Fil 2, 6-11).
- Três binômios simbolizados por três “C”
- Coração e misericórdia
Neste Ano Santo, é extremamente significativa a definição que nos dá o Papa Fracisco sobre o termo misericórdia. Segundo o pontífice, trata-se de uma palvra composta: miséria e coração. Traduzindo o binômio, coração que acolhe e abraça a miséria. Deus acolhe e abraça a miséria humana, com todas as suas falhas e faltas, com toda sua fraqueza e debilidade, com todos seus temores e pecados. Prova disso são, enre tantos outros, os exemplos de Maria e de Paulo. O hino do Magnificat demonstra como, no plano divino da salvação, a humildade e a pequenez de Maria não a impede de ser a mãe do Deus-Filho (Lc 1, 46-55). Não em primeiro lugar pelos méritos da mulher de Nazaré, mas pela incomensurável misericórdia do Criador.
Quanto ao apóstolo Paulo, por três vezes pede ao Senhor que afaste o “espinho cravado em sua carne” e que o atormenta. E é o próprio apóstolo quem escreve: “Ele, porém, me respondeu: ‘para você basta a minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo seu poder’. Portanto, com muito gosto prefiro gabar-me de minhas fraquezas, para que a força de Cristo habite em mim” (2Cor 12, 8-9). Além de “abraçar a miséria humana”, Deus a reveste de graça, pois seu amor é incondicional, independe de nossos méritos ou de nossas boas ações. O Pai nos ama não em primeiro lugar porque somos bons filhos e filhas, mas simplemente porque o somos. “Cristo morreu por nós quando ainda éramos pecadores”, conclui Paulo (Rm 5, 8-10).
O Senhor faz grandes coisas através da nossa fragilidade e até mesmo da nossa condição de pecadores. Ou então apesar dela, e até mesmo ainda contra ela! Não obstante a natureza humana fraca e frágil, o importante é o coração aberto ao Espírito. Natal é justamente isso! Preparar o terreno para a vinda do Senhor. Não basta providenciar a comida, a ceia, as luzes, a música, os ornamentos, os presentes, a árvore enfeitada, o presépio, a festa – o exterior. Além disso, ou em lugar disso, é preciso endireitar os caminhos retorcidos, aplainar as montanhas – converter-se interiormente, na linguagem dos profetas e, em especial, do precursor João Batista.
- Casa e família
Na atmosfera do Natal, não podemos esquecer que a casa e a Família de Nazaré representam o jardim, a escola, onde Jesus nasce, cresce desenvolve-se. Seria exagero afirmar que nesse terreno familiar o Menino aprende a “fazer-se carne”? Casa/família fazem pensar a um ambiente caloroso, cheio de carinho, ternura e compreensão. Lar é sinônimo de refúgio acolhedor de amor e proteção. Aqui basta reportar-nos à nossa infância, onde quase certamente os termos Natal e família comportam lembranças revestidas por um véu de mistério e de calor, simultaneamente real e indefinível. A ternura da família, de alguma forma, reflete a ternura de Deus.
Na infância de Jesus, duas figuras marcam uma presença ao mesmo tempo silenciosa e de extrema relevância. Maria é a mãe que, juntamente com os primeiros passos e as prmeiras palavras, ensina-lhe a balbuciar o nome de Deus e a seguir sua vontade. No Evangelho de Maria e da infância de Jesus, digamos assim, por duas vezes Lucas repete uma frase que contém, fundidos um no outro, o mistério de Deus e o mistério de toda mãe: “Maria guardava todos esses fatos, e meditava sobre eles em seu coração” (Lc 2, 19.51). Coração divino e coração materno se parecem. Os verbos guardar e meditar escondem um segredo, um tesouro, que somente os olhos da fé são capazes de desvendar. Quer dizer, interpretar a história pessoal ou coletiva com o olhar de Deus. Tropeçamos aqui com a expressão “sinais dos tempos”, extraída do Evangelho de Mateus (Mt 16, 1-4).
A outra figura é José. Simlesmente José! Em todos os relatos evangélicos, jamais se ouve a sua voz. Não fala, mas é personagem de ação. Nele, podemos afirmar que o “dizer” e o “fazer” já se integraram de forma indissociável. A tal ponto que a ação faz calarem as palavras. Diz-se que representa o homem justo por excelência. O que equivale a sábio, atento à voz de Deus e às ecessidades dos outros. Por sê-lo, é capaz de ouvir os anjos. Deus fala através dos anjos, tenham estes uma forma espiritual ou material. Podem inclusive estarem ao nosso lado. Prova disso são os anjos que cultivam a nossa vocação: a mãe, um amigo ou amiga, um formador ou formadora, um superor ou superiora, uma situação gritante de pobreza, injustiça ou desigualdade. Saber escutar a voz dos anjos leva José a cuidar de sua família, Maria e o Menino. E, consciente ou inconscientemente, a cultivar o plano divino da criaçao. Homem certo, na hora certa, sempre disposto a fazer a coisa certa!
É assim que a casa/família de Nazaré se torna terreno fecundo do silêncio e da palavra. Esta, aliás, é filha daquele. Só o silêncio profundo é capaz de engendrar palavras novas, livres, criativas, portadoras de luz, conforto e paz! Do útero do silêncio nasce a verdadeira palavra, “verbo feito carne”, não o palavreado vazio e inócuo. Foram necessários trinta anos de silêncio, e de escuta do Pai, para que o filho viesse a público com a Boa Nova do Evangelho. O “dizer” de Deus só pode ser ouvido em meio ao silêncio. E este, além da atitude de atenção, leva ao “fazer” do Filho. Uma vez mais, “dizer” e “fazer” se fundem, verbo e carne forma uma coisa só, palavra e ação se complemetam, se interpelam e se enriquecem mutuamente.
- Comunidade e pátria
Aqui puxo a brasa para a sardinha da Congregação à qual faço parte, como diz o ditado popular. O binômio comunidade e pátria põe em pauta o tema dos imigrantes, tão presente entre nós neste ano de 2015. Vivemos em uma socidade cada vez mais pluralista, tanto de um ponto de vista cultural quanto religioso. Todos os dias, nas ruas ou através dos noticiários, tropeçamos com uma grande diversidade étnica. Definitivamente, encontramo-nos frente aos “mil rtostos do outro”. O Menino que Maria dá à luz em Belém é um destes mil rostos: nasce longe de sua terra de origem, pobre e só, na periferia, fora da cidade, “pois não havia lugar para eles dentro de casa” (Lc 2, 7).
Apesar disso, ou justamente por causa disso, o profeta itinerante de Nazaré torna-se o protagonista do Reino de Deus. Não somente o “verbo que se faz carne”, mas um estranho andarilho que se faz anfitrião, oferecendo a todos a grande oportunidade de vida nova. A presença dos imigrantes, longe de ser um problema ou uma ameaça, pode e deve tornar-se, ela também, uma oportunidade para o encontro, o intercâmbio e o mútuo enriquecimento. Para isso, é necessário que o diálogo com o outro tenha como ponto de partida uma posição de absoluta simetria e de igualdade. Essa é a exigência da verdadeira evangelização.
Não raro, ao longo da história, chamamos de evangelização ao processo assimétrico, onde prevalece um monólogo “colonialista” de imposição e submissão. Em lugar disso, evangelizar é uma via de mão dupla: no encontro eu-tu, olho no olho, cada grupo e cada povo tem algo a receber e algo a oferecer. Diz a Doutrina Social da Igreja que no coração de cada pessoa e de cada cultura existem sementes do verbo, o mesmo “verbo que se faz carne”. Ao migrar, essas sementes se cruzam e se entrelaçam, enriquecendo-se uma à outra. Do cruzamento e do confronto, juntamente com um processo de depuração e purificação recíprocas, nascem novas experiências e novos valores, novos horizontes para a história e para o Reino de Deus.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs
Roma, 23 de dezembro de 2015