PRINCÍPIOS DA EDUCAÇÃO POPULAR NA AÇÃO EVANGELIZADORA NA CIDADE
A Educação Popular traz em sua trajetória, um lado definido na história. Ou seja, um posicionamento diante do mundo e das relações de opressão que nele existe e persiste ao longo dos séculos. Ele traz a crítica ao modelo tradicional de educação, não só em relação aos métodos e técnicas, mas se difere, especialmente, em relação aos princípios que a sustentam.
A educação tradicional tendeu sempre a dar continuidade ao modo de vida existente, naturalizando-o e reforçando-o como modelo único, para manter o status quo. Este modelo é baseado na transmissão de conhecimentos, onde as instituições de ensino têm o poder ensinar um modo determinado de vida, para além dos conhecimentos científicos, pretensamente neutros.
Embora a Educação Popular tenha nascido no contexto de luta por transformação social e com participação direta com os sujeitos que a desejaram, não é o lugar onde ocorre o ato educativo que a define e sim, os seus princípios e objetivos. Em governos de esquerda, no Brasil e em outros países da América latina, estes princípios foram fundamentais no modo de organizar também a educação formal, mas é no movimento de base, pastoral ou social que ele teve e tem suas raízes fincadas nas práticas e maior acúmulo de reflexão, inclusive teórica.
Para Brandão (1984) Educação Popular é “em si mesma, um movimento de trabalho pedagógico que se dirige ao povo como um instrumento de conscientização” (p. 74). Conscientização é um termo muito utilizado na obra de Paulo Freire quando se refere à passagem de uma consciência ingênua para uma consciência política, instrumentalizando as pessoas para serem livres e emancipadas, autoras das conquistas desejadas. Para Freire, “a conscientização implica, pois, que ultrapassemos a esfera espontânea de apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera crítica na qual o homem assume uma posição epistemológica”.¹
Wanderley (2010) corrobora com Brandão e Freire e nos aponta a Educação Popular como aquela que “constitui uma prática referida ao fazer e ao saber das organizações populares, que busca fortalecê-los enquanto sujeitos coletivos e, assim, contribuir através de sua ação-reflexão ao necessário fortalecimento da sociedade civil e das transformações requeridas” (p. 73).
A Educação Popular está fundamentada em princípios da pedagogia freireana:
a) homens e mulheres são seres de saberes – frente ao conhecimento somos todas/os iguais;
b) homens e mulheres são seres de relação – nascemos incompletas/os, completamo-nos na relação com a/o outra/o;
c) mudamos o mundo e somos mudados por ele – como sujeitos, mudamos o mundo e, ao intervir nele, mudamos também;
d) mudar é difícil, mas é possível.
Com base nestes princípios, destacamos alguns elementos fundamentais na obra de Paulo Freire que norteiam a formação baseada na Educação Popular: a utopia, o diálogo, a politicidade e o inacabamento e também a possibilidade de mudança. A separação desses elementos em tópicos distintos é apenas para efeito didático, pois são todos interligados, não sendo possível trabalhar sem a articulação entre eles.
a) utopia: podemos dizer que utopia é algo que ainda não aconteceu, mas que não é apenas sonho, que pode ser concretizado a partir de ações concretas, dependendo de certas condições de tempo e espaço em que estas são realizadas. A questão da utopia também está relacionada com o processo de formação política do sujeito. Não é possível olhar para o futuro e vislumbrar as possibilidades de liberdade, de emancipação, sem se reconhecer como sujeito de direitos e capaz de transformar-se a si mesmo e aos outros.
b) diálogo: o diálogo, em Freire, é visto como um fenômeno humano; um encontro de mulheres e homens mediatizados pelo mundo para pronunciá-lo; encontro como ato de criação, algo que faz parte da própria natureza histórica dos seres humanos. O diálogo é tido como condição para a construção do conhecimento e não se dá sem conflito. Em processos de formação os momentos de conflitos são ricos no sentido de crescimento e de amadurecimento teórico e de posicionamento das pessoas envolvidas frente às decisões a serem tomadas.
c) politicidade: A politicidade tem a ver com a não neutralidade da educação. Não há como negar a intencionalidade da ação humana nas mais diversas situações em que seja necessário fazer escolhas e, na educação popular, estas escolhas são marcadamente intencionais em todos os seus aspectos e dimensões. Não são neutros os seus conteúdos como não são neutras a avaliação e a metodologia adotada para desenvolver um trabalho. Nos processos formativos é necessário que se tenha clareza dessa não neutralidade; da intencionalidade da ação que se propõe, das possibilidades e dos limites que se colocam à frente.
d) inacabamento: A base para a formação de educadores está no princípio do inacabamento, ou seja, as pessoas se formam em processo. Segundo Freire, “o inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência vital”. Para ele “Onde há vida, há inacabamento”² e não foi a educação que fez mulheres e homens educáveis, mas a “consciência de sua inconclusão é que gerou sua educabilidade”. Esta é uma premissa freireana da formação de pessoas, de educadores: homens e mulheres são seres inacabados que buscam continuamente a sua humanização, para dar visibilidade à função social que a educação assume na formação das pessoas ao torná-las cada vez mais humanizadas.
e) mudança: A intencionalidade política que permeia a ação das/os educadoras/es quando assumida em sua radicalidade, torna-se um diferencial nos processos formativos dos educadores, contribuindo para que os mesmos ampliem sua consciência crítica e assumam um compromisso mais efetivo com as lutas e as aspirações dos grupos minoritários da sociedade, que ajudem a cultivar a esperança e a inserção dos seres humanos em espaços e movimentos sociais que afirmem o direito à vida com dignidade.
Diante da atual conjuntura sócio-política, econômica e ambiental, com todos os desafios que se se apresentam para a vida dos mais pobres, excluídos e explorados, as pastorais e movimentos sociais tem o compromisso de participar dos processos de mudança, seja a partir das ações diretas, quando é o caso, mas também a partir da formação de pessoas para realizarem este trabalho.
Entendemos que a luta pela transformação social deve se dar em dois âmbitos:
1. Mais amplo: com o intuito de viabilizar um projeto nacional de educação na perspectiva libertadora;
2. Mais específico: de acordo com as necessidades e características de cada pastoral e/ou movimento social em cada região onde atuam as lideranças.
Esta luta pressupõe a compreensão do contexto geral e de onde desenvolvemos o nosso trabalho, sabendo que:
1. Não há neutralidade da educação – é preciso “escolher o lado”, posicionar-se a favor do quê e de quem e contra o quê e contra quem lutamos;
2. Não há mudança sem a participação dos sujeitos envolvidos naquilo que se pretende mudar;
Com esta certeza, propomos que nesta tarefa de formação, tenhamos em conta algumas orientações e que estas estejam em consonância com os princípios da Educação Popular:
a) educar para a liberdade: com autonomia e de forma a oferecer às pessoas instrumentos para fazerem escolhas em suas vidas. Sair dos modelos educacionais fechados e abrir-se para modelos mais abertos que considerem o ser humano como sujeito de aprendizagens.
b) educar para um mundo de direitos garantidos: agua, alimento, moradia, saúde, transporte, lazer etc. Não há possibilidade de mudança sem participação social.
c) educar para a solidariedade: em contraposição à hegemonia de uma educação para a individualidade, a competição e aos modos mercadológicos impostos pela grande mídia. Há experiências positivas com quem podemos aprender. Experiência de partilha na sociedade, nas igrejas e movimentos e também na educação formal e não formal.
d) educar para o respeito ao diferente: reconhecer horizontalmente as pessoas com etnia, religião, gênero e orientação sexual diferente das nossas. Vivemos momentos de explicitação de horrores em relação às diferenças.
e) educar para a sustentabilidade: não dá para dissociar humanidade e natureza. Existem experiências de sustentabilidade, com preservação da natureza (no campo) e de formas de tratar os resíduos sólidos (na cidade) de modo a não destruir e não poluir o planeta.
f) educar para o compromisso social: não nascemos só pra comer, beber, trabalhar para o sustento, precisamos avançar no compromisso com as lutas sociais.
g) educar para ser feliz: ser feliz, mas compreendendo que a nossa felicidade não pode ser apenas individual, mas deve incluir o plano de felicidade para todos.
Na ação evangelizadora, a leitura popular da bíblia é um caminho para a reflexão com os grupos envolvidos e os princípios da educação popular são necessários para que haja coerência entre o “onde se quer chegar” e “como se quer chegar”.
Finalizando esta reflexão, cabe lembrar que não haverá Reino e nem uma Sociedade justa e fraterna sem a sua participação neste trabalho!
¹Paulo FREIRE, Conscientização: teoria e prática da libertação. Uma introdução ao pensamento de Paulo Freire, p. 30.
²Paulo FREIRE, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa, p, 50.
Referências
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Repensando a pesquisa participante. São Paulo: Brasiliense, 1984.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 38.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.
_____. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 30.ed. Paz e Terra, 2004.
______. Conscientização: teoria e prática da libertação. Uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. 3. ed. São Paulo: Centauro, 2005.
POSSANI, L.F.P. e SANCHEZ, W.L. Formação ecumênica e popular e feita em mutirão. Curso de Verão 25 anos. São Paulo: Paulus Editora, 2011.
WANDERLEY, Luiz Eduardo W. Educação popular: metamorfose e veredas. São Paulo: Cortez Editora, 2010.
Lourdes de Fatima Paschoaletto Possani, doutora em Educação pela PUC-SP, pesquisadora nas áreas de Currículo, Educação de Jovens e Adultos e Educação Popular. Supervisora Escolar aposentada, hoje trabalha no Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular – CESEEP.