No racismo, corpos negros são construídos como corpos impróprios, como corpos que estão “fora do lugar” e, por essa razão, corpos que não podem pertencer.
Grada Kilomba.
por Letícia Rocha*
Nesse excerto, a escritora e artista negra Grada Kilomba, externaliza a sua dor. A dor de quem conhece as mazelas do racismo, uma dor que reverbera e se une a uma multidão de seres humanos que carregam em seu corpo a negritude. Esta construção à qual Kilomba se refere, tem início no processo de colonização, em que os povos latino-americanos foram encobertos em função de novas afirmações advindas do arcabouço europeu, onde pessoas foram classificadas entre superiores e inferiores, definindo-os enquanto raça e gênero (ROCHA, 2019).
Os corpos negros, nesse processo, experimentaram a migração forçada da África, a violência do trabalho forçado e, para as mulheres, também a violência sexual. Ao deixarem suas terras, também, foram obrigados a renunciar a suas famílias, culturas, costumes e crenças.
É nesse processo de colonização que se encontram as raízes do fenômeno que atualmente tem-se nominado Racismo Religioso. Ao se instalarem nessas terras, mulheres e homens advindos de África foram escravizados/s e desumanizados/as. Suas crenças foram consideradas práticas incomuns, primitivas, obsoletas, se comparadas ao estilo europeu cristão católico, em vigor naquele período e, portanto, deveriam ser extintas para impor um único Deus, o Deus do colonizador.
O tráfico humano para fins de escravização, foi aceito pela igreja católica como uma possibilidade de salvação dos povos africanos, estes foram considerados pecadores, por isso, precisavam se redimir para viver em terras católicas (SOUZA, 2020). Nessa perspectiva, o cristianismo, em sua versão católica, contribuiu exponencialmente para o apagamento da existência das crenças trazidas pelos povos africanos, construindo assim, as bases para o racismo religioso.
Assim sendo, racismo religioso trata-se do ataque verbal e físico a pessoas negras pertencentes às tradições religiosas de matriz afro-brasileiras ou também, chamadas de Comunidades Tradicionais de Terreiro (CTTro). Sidnei Nogueira, babalorixá e Doutor em Semiótica, tem se colocado como importante interlocutor nesta discussão, ao evidenciá-la em seus escritos e suas redes sociais. Este autor (2020, p.123), denuncia que “o racismo religioso quer matar existência, eliminar crenças, apagar memórias, silenciar origens. É a existência dessas epistemologias culturais pretas que reafirmam a existência de corpos e memórias pretas”. Suas palavras são fortes, profundas e cirúrgicas ao apresentar fatores geradores da prática do racismo religioso. Tais práticas resulta no apagamento das crenças e divindades, ou seja, o genocídio religioso, para fazer uso de um termo proposto por Abdias do Nascimento. Outro aspecto – e não menos grave – que pode resultar desta prática é o adoecimento físico e psicológico das pessoas negras que assumem a prática religiosa de origem africana ou afro-brasileira.
E aqui rememoramos o caso da Yalorixá Gildásia dos Santos, mais conhecida como mãe Gilda, que consideramos um caso emblemático de racismo religioso. Mulher, negra, candomblecista, da cidade de Salvador, foi acusada pela Igreja Universal do Reino de Deus de charlatanismo. A partir desse momento, mãe Gilda começou a sofrer ataques verbais e físicos, sua casa foi invadida e quebraram objetos sagrados da sua devoção. Sua saúde foi definhando diante dessa situação o que causou o seu falecimento no dia 21 de janeiro de 2000. Esta data passa a ser reconhecida no âmbito municipal e federal, como o dia de Luta contra a Intolerância Religiosa. É um dia para fazer memória da vida e da luta de mãe Gilda, desrespeitada em sua crença. E, sobretudo, dia em que todas/os crentes ou não crentes devem pensar caminhos de superação deste mal que assola o país.
O que ocorreu com mãe Gilda foi um ato contundente de racismo religioso, para além da Intolerância Religiosa. Nesse sentido, porque é importante afirmar racismo religioso, se sempre se falou em intolerância religiosa para dizer das violências sofridas por pessoas de terreiro?
Voltamos novamente em Nogueira (2020, p.39), que apresenta o significado de Intolerância Religiosa, “tem sido utilizada para descrever um conjunto de ideologias e atitudes ofensivas a crenças, rituais e práticas religiosas consideradas não hegemônicas”. Dado o acirramento da violência a pessoas adeptas de terreiro e a seus templos, nos parece que afirmar somente intolerância religiosa não é suficiente para expressar o que ocorre no cenário atual.
O que há instalado em nossa sociedade é um racismo com recorte religioso: racismo à religião/religiosidade do negro, às divindades negras, à ritualística negra, às ancestralidades negras.
Ao fim e ao cabo, o racismo é ao povo negro. Por isso, tais crenças são consideradas marginais, demoníacas e são relegadas a menor importância. Em outras palavras, o racismo religioso é uma ferida que sangra no seio de nossa sociedade brasileira, desde o período colonial. O que temos no presente da história são as sofisticações desse problema acentuados por grupos religiosos (neo)conservadores, por fundamentalismos sociais, políticos e religiosos.
Por consequência, casos de racismo religioso seguem avançando com novas forças e nuances. Com os grupos citados acima que carregam em suas narrativas discursos de ódio, em que incita as/os adeptas/os a praticarem atos de violência contra corpos e os templos de seguidores das tradições afro-brasileiras. As bases que sustentam esta forma de racismo em nossa sociedade é o racismo estrutural e institucional e ambos são as molas propulsoras que perpassam o tecido social, cultural e religioso brasileiro. É o racismo em suas formas multifacetadas que aloca a população preta a um lugar de imobilidade, com pouco ou nenhuma possibilidade de ascensão social, política, profissional.
Nesse breve texto, evocamos o contexto e as problemáticas que envolvem o racismo religioso no cenário atual, mas nos parece viável apresentar caminhos de combate a esta forma de racismo. Sendo assim, elencamos alguns:
- Apostar na educação religiosa nas escolas de ensino básico, apresentada desde a perspectiva das Ciências da Religião, que visa o fenômeno religioso de forma plural e diversa;
- Apostar na formação de agentes/líderes religiosos sobre Racismo Religioso e outros temas correlatos para que saibam lidar com as adeptas das suas denominações religiosas;
- Dedicar-se a leituras de autoras/es negros para conhecer o pensamento e as contribuições para as religiões, a cultura e a sociedade;
- Exercer uma comunicação mais afetiva e criativa que considere a outra/o em suas diferenças;
- Exercer o respeito, ponderação e a amorosidade sempre ao aproximar-se de outra tradição religiosa diferente da que você professa.
Essas atitudes aparentemente pequenas e insignificantes são catalisadoras de transformações nos espaços e na vida das pessoas que sofrem o racismo religioso.
Referências
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogá, 2019.
NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro, processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1978. p. 1.
NOGUEIRA, Sidnei. Intolerância religiosa. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra, 2020.
ROCHA, Letícia. Mulheres e CEBs em Montes Claros-MG: descolonialidade e empoderamento. Dissertação de mestrado. Universidade Metodista de São Paulo. São Bernardo do Campo, 2019. 273 p.
SOUZA, Ricardo Luiz. Catolicismo e Escravidão: o discurso e a posse. EDUNILA, Foz do Iguaçu, 2020.
Letícia Rocha é Graduada e mestra em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo, pós-graduada em Neuropsicologia Educacional e Pensamento Andino e Feminismo Descolonial. Membra da equipe de Católicas pelo Direito de Decidir.