A notícia nem é tão nova, mas só agora os acontecimentos sociais e eclesiais me permitiram fazer o que há semanas desejava: escrever a alegria que é ter a estátua de Clarice Lispector enchendo de mistério e encanto as calçadas do Leme, bairro onde viveu e que não pode ser mais carioca.
Alegro-me por infinitas razões. Primeiro, por ser Clarice que merece tanto estas e outras homenagens. Sobre a notícia dada na internet pelo G1 constato estarrecida comentários desfavoráveis. Coisas impressionantes tipo: ”Com tanta coisa importante para pensar, perder tempo com estátuas” ou: ”Ela não era ucraniana? Por que não fazer uma estátua na Ucrânia?” E por aí vamos.
Enche-me de tristeza que o povo brasileiro ignore tão grosseiramente esta escritora maior, que era mais brasileira que muitos de nós, que deu sua vida, sua existência, seu talento literário até a última gota no Brasil e no Rio de Janeiro. Sobre a importância de homenagear escritores e literatos em geral, melhor nem comentar. A afirmação é tão bruta, tão violenta em sua ignorância que carece de toda e qualquer pertinência.
Então, não é importante a obra literária de uma mulher como Clarice? Não é importante alguém, uma escritora maior como ela, fazer o nome do Brasil nas letras transpor fronteiras, conquistar mundos e inaugurar continentes novos na criação literária? Onde estamos? Que povo somos? Só conseguimos dar importância à mediocridade nossa de cada dia, à política suja que preside tristemente nosso país e a cada dia se deteriora mais? Por que não Clarice e a homenagem a ela?
Clarice é mulher e isso já lhe dá uma conaturalidade e um “ parentesco” muito próximo ao mistério. Mulher bonita, com olhos escuros e profundos, cheios de um desejo e uma criatividade indomável. E com a escrita ia decifrando o mundo que a fazia ver em um acanhado quarto de empregada um minarete desde onde observava o universo. Ia também descendo até o último degrau de insignificância e asquerosidade de um inseto, para desde ali comungar com a totalidade e a transcendência. Refiro-me aqui ao livroA paixão segundo GH, inegavelmente meu preferido na obra de Clarice.
Mas aconteceram também para mim A maçã no escuro, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, A hora da estrela e tantos mais. Todos mundos encantados que me abriram as portas e me elevaram o espirito.
Clarice é mistério e mística, é paixão, desejo e êxtase. E por isso o olhar da teologia, debruçado sobre sua obra literária, percebe a transcendência que brota de suas páginas mesmo quando não tiver havido intenção explícita de fazê-lo.
Em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, a teologia percebe o processo de iniciação amorosa, que vai ser narrado como algo para além meramente do encontro físico e apaixonado de um homem e uma mulher. Trata-se de um processo de encontro profundo entre dois seres humanos; e, mais que isso e para além disso, de um encontro com o Mistério. Que nome terá esse mistério? Em todo caso, em nota da própria autora posta antes do começo da narrativa, trata-se de um mistério maior, um mistério que está acima: “Este livro se pediu uma liberdade maior que tive medo de dar. Ele está acima de mim. Humildemente tentei escrevê-lo. Eu sou mais forte do que eu.”
Ao mesmo tempo, o mistério maior e mais alto que pediu uma liberdade que provoca medo suscitou o sentimento de humildade e a atitude da obediência que consente em tomar da pena e escrever. E ao curvar a cabeça e obedecer a inspiração, percebe ser mais forte que ela mesma. Parece-nos que Clarice anuncia aí o drama e a beleza próprios da condição humana, de ser finitude, morada do Infinito e do Incondicionado. E de encontrar sua força e alegria em obedecer a Outro que a institui como aquilo que é: ser mortal criado para a vida.
O parágrafo final desta obra é sobre Deus, que Lori diz ser erroneamente humanizado pelos seres humanos. Mas que “embora não sendo humano, diviniza…” suas criaturas. O livro inicia com uma vírgula e termina com dois pontos, deixando evidente que a narração prossegue com a vida dos personagens em andamento e finaliza também inconclusivo nos deixando a pensar o que teria acontecido. Lori e Ulisses estão diante da porta aberta que prenuncia as coisas que ainda virão, envoltos em esperança. Neles, Eros e ágape realizam o milagre do amor. Sua experiência iniciática, sua aprendizagem, tem afinidades com a mística aventura da alma ao atravessar a noite escura, como no “Cântico Espiritual”, de São João da Cruz, para, enfim, vislumbrar e contemplar o rosto do Amado.
Clarice é esse mistério onde transcendência e imanência dançam de mãos dadas celebrando o mistério maior de Deus e da vida. Como não havia ela de merecer essa urgente, pressurosa e justíssima homenagem de estar esculpida à beira do mar, no bairro onde viveu e que tanto amou?
Fica aí, Clarice, que é teu lugar. Meu coração canta de alegria por ver-la aí imortalizada pela arte de meu querido primo Edgard (Dedê) Duvivier com a ajuda de seu filho, o também artista Gregório Duvivier. Ambos com suas mãos nos deram Clarice para nossa contemplação toda vez que do mar nos aproximarmos para bebê-lo com os olhos e com o corpo.
Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ, teóloga e autora de “Simone Weil – Testemunha dapaixão e da compaixão” (Edusc)