Começo essa reflexão com a necessidade de nos perguntarmos sobre os sentidos de ecumenismo assumidos pela Campanha da Fraternidade Ecumênica (CFE), com todos os seus desafios e os seus desdobramentos éticos e políticos. Para começar, como aprendi com a teóloga Nancy Cardoso, é importante retomar que o ecumenismo se relaciona com mais outras duas palavras, organizadas desde a oikos: a unidade básica da sociedade, a casa e também o mundo. Assim, teríamos: economia (oikos + nomos, lei/norma); ecologia (oikos + logos, compreensão/estudo); e ecumenismo (oikos + particípio passivo feminino, habitado/habitantes) (PEREIRA & SOUZA, 2014, p. 45). Essas três formas de organização da vida humana no mundo interagem: a normatização do modo de produção da vida (economia), com a compreensão das relações e dos sistemas no mundo (ecologia), com a pergunta pelas formas de ocupação/vivência na casa-comum (ecumenismo) (PEREIRA & SOUZA, 2014, p. 45).
Nessa interação entre ecumenismo, ecologia e economia, o sentido ecumênico liga-se diretamente com uma pergunta, uma ética: como habitamos o mundo? Como vivemos e nos relacionamos ante as normas, os valores e compressões de nossa casa? De maneira mais direta, assumir o desafio ecumênico – como faz essa Campanha da Fraternidade -, é reconhecer que o ecumenismo é um movimento, não um lugar fixo, uma espécie de “baú” transmitido de geração em geração. O tom e a interpretação assumida aqui é compreender o ecumenismo como uma ação e um desafio de se construir uma casa-comum (oikoumene) justa, sustentável e habitável para todas as pessoas. Essa leitura pode nos movimentar, pode nos colocar numa ação permanente de construção coletiva e solidária de “outros mundos possíveis”, com o reconhecimento dos limites e das ambiguidades das ações humanas, inclusive das religiões. Além disso, com esses sentidos iniciais, a Campanha da Fraternidade pode assumir-se ecumênica desde um critério: no coração da vivência ecumênica está a luta pela justiça, a partir das feridas da história e numa crítica radical em um mundo estruturado pelo capitalismo, pelo racismo e pelo patriarcado, que afetam as maiorias empobrecidas, as vidas das mulheres, a juventude negra, o meio ambiente e tantas outras vítimas de um mundo injusto.
Dizer ecumenismo, assim, implica em assumirmos uma postura radical pela superação do racismo ambiental: “a distribuição desigual dos riscos e danos ambientais em populações por recortes étnicos, tradicionais e de gênero” (IULIANELLI, 2012, p. 127). A crise socioambiental que vivemos tem pesos distintos e completamente diferentes para determinadas parcelas da população. A ausência de saneamento básico toca a vida das maiorias empobrecidas. O avanço do agronegócio devasta povos e comunidades tradicionais, como as realidades vivenciadas pelos povos indígenas no Mato Grosso do Sul, e a vida das mulheres e suas tentativas de produzir alimentos por meio da agroecologia, em Apodi (RN). Além das mudanças climáticas que fazem aumentar o deslocamento de jovens em regiões de Alagoas e Santa Catarina.
Nessa abordagem de ecumenismo, também podemos retomar princípios presentes em Edimburgo (1910) – Primeira Conferência Missionária Mundial, marco ambíguo e inicial do ecumenismo contemporâneo, que vem dos traços de um caminho ecumênico marcadamente leigo, protestante e jovem. Um desses princípios é o diálogo com as outras religiões, algo que foi encoberto em alguns desdobramentos da Conferência de Edimburgo devido ao imperativo de “evangelizar o mundo nesta geração”. Como sabemos, nada é neutro. Tudo se constrói em relações de poder e traz consigo implicações para o modo de viver no mundo e para nossos argumentos teológicos.
Embora reconheço a importância das diferentes abordagens em relação ao ecumenismo, com seus contextos e disputas contingências, procuro me afastar daquela tradicional separação entre ecumenismo e diálogo inter-religioso ou ecumenismo e macro-ecumenismo. Acredito que há uma proposta nesta Campanha da Fraternidade em beber em outras fontes deste “rio ecumênico”, uma delas é esta reflexão elaborada no Conselho Mundial de Igrejas e reinterpretada e reconstruída por redes como a Rede Ecumênica da Juventude (REJU), que compreende ecumenismo em três dimensões. Nesta perspectiva, seguindo o horizonte em que se busca unidades em um mundo dividido, tem-se: i) a unidade intra-religiosa, em que se busca construir uma interação e respeito no interior de cada tradição religiosa e comunidade de pertença (ex.: a unidade das cristãs e dos cristãos); ii) a unidade inter-religiosa, em que se procura estabelecer pontes de diálogo, fraternidade/solidariedade e interação por ações transformadoras entre pessoas de distintas vivências de fé; e iii) a unidade na luta pela justiça, paz e integridade da criação.
Com essa compreensão de ecumenismo em sentido mais amplo, quais desafios estão postos para se refletir sobre a casa-comum, assumindo-a como nossa responsabilidade? A resposta a essa pergunta e a incidência política na tentativa de “ver o direito brotar como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca” (Am 5,24), é o que movimenta esta Campanha da Fraternidade. No entanto, para instaurar diálogos, cabe-nos apontar alguns desafios que essa temática e as feridas de nossa realidade nos provocam. Uma delas é a necessidade de se refletir criticamente sobre modelos de desenvolvimento e as utopias e a confessionalidade do progresso. Por exemplo: há de fato sustentabilidade do planeta para manter o projeto de civilização que organiza a política do desenvolvimentismo que tem orientado muitos governos, como o do Brasil (basta recordarmos a demarcação das terras indígenas e as grandes obras como Belo Monte?) Ainda: estamos dispostas(os) a abandonar privilégios oriundos do progresso para construirmos outros modelos de desenvolvimento ou alternativas ao desenvolvimento hegemônico? Para trazer uma outra problemática decorrente das questões anteriores: como se estruturam as nossas cidades? Quem tem acesso ao saneamento básico, de fato? Na crise da água vivenciada no sudeste do país no ano passado, que teve no estado de São Paulo um caso emblemático, quem foi responsabilizado pela falta de planejamento? Em quais regiões do estado e da cidade de São Paulo o racionamento da água começou? As grandes empresas sofreram com estes cortes?
Perguntas como estas nos abrem bons diálogos e boas possibilidades de incidência e transformação desde uma compreensão da emergência de uma justiça socioambiental. Nesse processo, uma Campanha da Fraternidade Ecumênica coloca-se, articulando Igrejas Cristãs, outras religiões e distintos movimentos sociais e organizações, no papel de criticar – desde o critério da justiça e a defesa das maiorias subalternas que resistem/insistem – a aliança entre religião (como o cristianismo) e o capitalismo, com seus modelos de desenvolvimento injustos que exigem sacrifícios e vítimas, como a vida das mulheres, de jovens e da natureza. Mas também denunciar a confessionalidade do progresso, desmontando os argumentos religiosos que organizam as narrativas de crescimento a qualquer custo e as orientações estabelecidas desde o mercado. E também, a Campanha da Fraternidade, por ser ecumênica, pode construir incidências políticas entre as igrejas, entre as religiões e movimentos na superação do “escândalo da divisão” socioeconômica e do racismo ambiental que estruturam a nossa casa comum.
Para aprofundar a leitura:
IULIANELLI, Jorge Atílio. Juventude e Justiça socioambiental: no horizonte das mudanças climáticas. Em SOUZA, Daniel Santos (org.). Juventude e Justiça Socioambiental: perspectivas ecumênicas. São Leopoldo: CEBI, 2012.
PEREIRA, Nancy Cardoso & SOUZA, Daniel Santos. Ecumenismo: um grão de salvação escondido nas coisas do mundo. São Paulo: Fonte Editorial, 2014.
e integrante da Rede Ecumênica da Juventude (REJU)