CONCÍLIO VATICANO II – 55 ANOS DE SUA ABERTURA: 1962-2017
I – MANHÃ DE 11 DE OUTUBRO DE 1962: NA BASÍLICA, JOÃO XXIII INAUGURA O CONCÍLIO
O papa João XXIII fixou para 11 de outubro, festa da Maternidade de Maria, o início do Concílio Vaticano II, o 21º da longa série iniciada com o Concílio de Nicéia, no ano de 325.
Na Basílica de São Pedro, encontravam-se os mais de 2.500 padres conciliares, as delegações oficiais de 86 países e organismos internacionais, os observadores das Igrejas cristãs não unidas a Roma, os peritos e convidados; na praça, a enorme multidão que aplaudira a longa procissão dos bispos de túnica e mitra brancas e, finalmente, o Papa que a abençoava do alto da sedia gestatória.
Na entrada da Basílica, a surpresa: o Papa desce da sedia e percorre a pé toda a nave central da igreja, como irmão entre irmãos.
Dirige-se ao altar da confissão de São Pedro e acompanha a missa celebrada pelo Cardeal Tisserant.
Senta-se depois, recebe a obediência de representantes dos cardeais, patriarcas, arcebispos e bispos.
Faz sua profissão de fé, na formula do Credo niceno-constantinopolitano, e inicia o discurso de abertura do Concílio: Gaudet Mater Ecclesia, Alegra-se a Mãe Igreja.
Alceu Amoroso Lima que integrava a delegação oficial do governo brasileiro para a abertura do Concílio, escreveu à sua filha religiosa sobre o discurso do Papa: [apreciei] o que ele disse, especialmente nas passagens em que falava do “novo espírito” da Igreja, que não era de anátemas e condenações, mas de amor, fraternidade, união na verdade, em suma, tudo aquilo que venho pregando há tanto tempo em torno do espírito de universalidade, equilíbrio, paternidade, paz, amor etc. e tal, que você já está chateada de ouvir. E destacou também o “trabalho” e condenou os “pessimistas”!
De modo que o que me falou, antes de tudo, foi a palavra do Papa, ouvida (e vista) da sua própria boca, com uma voz tão firme como de um moço e uma atitude tão calma, tão desprendida, tão natural (e, portanto, tão sobrenatural) como se estivesse rezando sozinho em sua capela particular! E, no entanto, estava e estávamos vivendo um momento histórico naquela basílica, onde agora se celebrava o maior Concílio da história.
Entrou por seus pés, e não na “sedia gestatória”, o que apreciei muito (estava torcendo que assim fosse) e também saiu assim (LIMA, Amoroso Alceu, João XXIII, 1966, pps. 84-85).
II – GAUDET MATER ECCLESIA – ALEGRE-SE A MÃE IGREJA
DISCURSO MEDITADO E LONGAMENTE PREPARADO
Se a ideia do Concílio brotara na mente de João XXIII como “fiore d´inattesa primavera”, “flor de inesperada primavera”, chegara a hora, depois de três anos de intensa preparação, de abrir o tão esperado Concílio.
João XXIII preparou-se cuidadosamente para aquele momento. No discurso transparece uma síntese de toda sua vida: a fé e a piedade bebidas no leite materno e no exemplo laborioso de um pai lavrador; sua vocação e seu ministério, iniciado em meio aos horrores da primeira guerra mundial como capelão militar, continuado como diplomata na Bulgária ortodoxa e na Turquia muçulmana; na nunciatura em Paris e como bispo no patriarcado de Veneza e na cidade de Roma, acumulando ali o ofício de pastor universal. Condensou neste discurso toda sua experiência de vida, sua sabedoria e espiritualidade.
No mês de agosto, nas suas férias, embora movimentadas, de Castel Gandolfo, começou a esboçar o discurso. Em setembro, de oito a dezesseis, retirou-se para os Exercícios espirituais. O Papa anota no dia 10: Início do meu Retiro Pessoal para o Concílio na Torre S. Giovanni (Roncalli G. Pater Amabilis, Agende del Pontefice: 1958-1963, p. 430). Tudo aqui é preparação da alma do Papa para Concílio e, logo adiante: Vejo bem que a preocupação de servir o Concílio prevalecerá sobre as formas costumeiras dos assim chamados exercícios espirituais. No dia 11, anota: Nesse meio tempo, alinhavo também o primeiro esboço das ideias para o discurso de abertura de 11 de outubro (ibidem, p. 431).
Relativamente breve, a Gaudet Mater Ecclesia, como ficará conhecido o discurso de abertura, compreende a introdução, sete pequenos blocos e a conclusão, num total de 44 parágrafos. O Papa buscou a inspiração bíblica no evangelho de Lucas, evangelho do Espírito Santo, da alegria e do cântico de Maria. Lucas é citado 4 vezes, Mateus, 2. Recorre ainda ao Gênesis e, no Novo Testamento, aos Atos dos Apóstolos, a Paulo (II Coríntios e I Timóteo) e, enfim, ao Apocalipse. Dos Santos Padres, apenas Agostinho é evocado.
Mais do que um programa para o Concílio, João XXIII oferece uma atitude perante a história, uma postura em face do presente, um caminho para o amanhã, “como se visse o invisível” (Hb 11, 27b).
O que desejava era transmitir o espírito que devia animar o Concílio, mirando para além das fronteiras da Igreja Católica, à humanidade toda. Propõe:
Atitude confiante e positiva, afastando-se dos profetas da desventura que anunciam acontecimentos sempre infaustos, como se estivesse iminente o fim do mundo (IV.3).
Nada de condenações e anátemas, mas a serena apresentação da verdade. Ela deve responder às exigências do nosso tempo. Uma coisa é a substância do “depositum fidei”, isto é, as verdades contidas na nossa doutrina, e outra é a formulação com que são enunciadas, conservando-lhes, contudo, o mesmo sentido e o mesmo alcance (VI.5).
Magistério de caráter eminentemente pastoral. Será preciso atribuir muita importância a esta forma e, se necessário, insistir com paciência, na sua elaboração; e dever-se-á usar a maneira de apresentar as coisas que mais corresponda ao magistério, cujo caráter é prevalentemente pastoral (VI.5).
Remédio da misericórdia. A Igreja sempre se opôs a estes erros; muitas vezes até os condenou com a maior severidade. Agora, porém, a esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade. Julga satisfazer melhor às necessidades de hoje mostrando a validez da sua doutrina do que renovando condenações (VII.2).
Busca ecumênica pela unidade dos católicos, dos cristãos, dos fieis de religiões não cristãs e de todo o gênero humano. Veneráveis irmãos, isto se propõe o Concílio Ecumênico Vaticano II, que, ao mesmo tempo,que une as melhores energias da Igreja e se empenha por fazer acolher pelos homens mais favoravelmente o anúncio da salvação, como que prepara e consolida o caminho para aquela unidade do gênero humano, que se requer como fundamento necessário para que a cidade terrestre se conforme à semelhança da celeste «na qual reina a verdade, é lei a caridade, e a extensão é a eternidade (VIII.4).
Que o Concílio corresponda às necessidades e esperanças dos diversos povos. Queira o céu que as vossas canseiras e o vosso trabalho, para o qual se dirigem não só os olhares de todos os povos, mas também as esperanças do mundo inteiro, correspondam plenamente às aspirações universais (IX.4).
Espíritos mais alertas colheram, sob a aparente simplicidade daquelas palavras, a profunda novidade do discurso do Papa. Conforme o Concílio avançava, tornou-se a Gaudet Mater Ecclesia bússola e farol que o guiaram nos momentos de incerteza e impasses.
III – AO CAIR DA NOITE: NA PRAÇA DE SÃO PEDRO:
A SEGUNDA ABERTURA DO CONCÍLIO
As emoções daquele dia não se acabaram, porém, com a longa cerimônia de abertura que durou mais de sete horas e cujo ponto alto fora o discurso do Papa. A noite reservava nova surpresa.
Uma procissão luminosa percorreu as ruas de Roma na noite daquele 11 de outubro, dia da abertura do Vaticano II.
Queria recordar, assim, a espontânea e entusiástica homenagem que, ao final do Concílio de Éfeso (431), o povo da cidade, numa alegre procissão, à luz de tochas, prestara a Maria, proclamada pelo Concílio, “Teótokos”, Mãe de Deus.
João XXIII havia escolhido de propósito esta festa da Maternidade de Maria, para a abertura do Concílio e agora, diante daquele mar de velas acesas que invadira a Praça de São Pedro e suas ruas adjacentes, assomou ao balcão dos aposentos pontifícios para abençoar a multidão:
Olhai a lua!
Esta se levantava no horizonte, iluminando a noite. O Papa emocionado dirige-se ao povo e brota dos seus lábios, inteiramente de improviso, um segundo discurso de abertura do Concílio, diferente daquele da manhã longamente meditado e amadurecido e dirigido aos cardeais, patriarcas, bispos e aos grandes da terra.
Naquele cair da noite, volta-se para o povo miúdo da cidade saído dos bairros populares e para os peregrinos do mundo todo que haviam acudido a Roma para a abertura do Concílio.
Inicia um diálogo com a multidão:
Caros filhos, escuto suas vozes. A minha é uma só, mas retoma as vozes todas do mundo; e aqui de fato o mundo está representado. Dir-se-ia que até a lua se apressou nesta noite… Observai-a no alto a contemplar este espetáculo… Concluímos uma grande jornada de paz… Sim, de paz: “Glória a Deus e paz aos homens de boa vontade”.
A minha pessoa nada conta: é um irmão que fala a vocês, um irmão que se tornou pai pela vontade de Nosso Senhor… Continuemos, pois, a nos querer bem deste modo no encontro: tomar aquilo que nos une e deixar de lado, alguma coisa que possa nos colocar em dificuldade…
Voltando para casa, vocês encontrarão as crianças. Façam-lhes uma carícia e digam-lhes: “Esta é a carícia do Papa”. Encontrarão talvez alguma lágrima para ser enxugada. Tenham para quem sofre uma palavra de conforto. Que saibam os aflitos que o Papa está com seus filhos, especialmente nas horas de tristeza e amargura…
E, então, todos juntos nos amemos: cantando, suspirando, chorando, mas sempre cheios de confiança no Cristo que nos ajuda e nos escuta, retomemos nosso caminho.
Adeus, filhinhos!
Acrescento à bênção o augúrio de boa noite (DCM IV 592-593).
IV – NAS ANOTAÇÕES DESSE DIA:
FIAT VOLUNTAS TUA – FAÇA-SE A TUA VONTADE
Terminado aquele dia memorável e cheio de emoções, o Papa, que acabara de ser prevenido por seu médico, poucos dias antes, acerca da grave enfermidade, que o acometera e que o levaria à morte, faz serena entrega de sua vida a Deus. Este lhe permitira abrir o Concílio, mas certamente lhe pediria que o entregasse ao seu sucessor, para seu prosseguimento e conclusão.
Escreve o Papa em sua agenda:
11 de outubro – quinta-feira.
Esta jornada assinala a solene abertura do Concílio Ecumênico. A notícia está em todos os jornais e, em Roma, nos corações exultantes de todos. Agradeço ao Senhor por não fazer-me indigno da honra de abrir, em seu nome, este início de grandes graças para sua Santa Igreja
Ele dispôs que a primeira centelha que preparou durante três anos este acontecimento tivesse saído da minha boca e do meu coração.
Estava disposto a renunciar também à alegria deste início.
Com a mesma tranquilidade repito o “Fiat voluntas tua” [seja feita a tua vontade], a respeito do manter-me à frente deste primeiro posto de serviço, por todo o tempo e em todas as circunstâncias de minha humilde vida, e acerca do sentir-me obrigado, a qualquer momento, a passar ao meu sucessor esta tarefa de proceder, continuar e concluir [o concílio].
Fiat voluntas tua, sicut in coelo et in terra [Seja feita a tua vontade, assim na terra, como no céu] (Mt 6, 10)” (Roncalli G. Pater Amabilis, Agende del Pontefice: 1958-1963, p. 441).
José Oscar Beozzo