O Reino de Deus é paz, justiça e alegria. (Rm 14,17)
Introdução
O texto da carta de Paulo aos Romanos que dá título a esta reflexão, discorre sobre uma situação muito comum no século primeiro por conta de toda a diversidade cultural e religiosa que havia no Império Romano onde a igreja cristã floresceu. Ainda hoje nos deparamos com o desafio proposto neste capítulo, mesmo que estejamos vivendo 20 séculos depois, pois as orientações ainda se fazem necessárias para que haja bem viver na nossa aldeia global em Pindorama, nome dado pelos indígenas antes da chegada dos invasores europeus à região identificada atualmente como Brasil.
Paulo ressalta que o testemunho de fé dos que nasceram de novo deve acompanhar a sabedoria demonstrada na prática do acolhimento às diferenças, com amor e respeito à individualidade de cada um. Sendo provenientes de contextos culturais e ritualísticos diversos, as diferenças entre os irmãos na fé envolviam não só alimentos considerados sagrados ou não, mas também a guarda de determinadas datas de celebração dentre outros.
O alerta do apóstolo conecta-se ao fato de que tudo que fazemos deve ter como finalidade última agradar a Deus pois o exercício da responsabilidade cristã individual passa por não agir de maneira impositiva, visto que não fomos tratados dessa forma por Cristo. A graça revelada no Evangelho é prova definitiva de que o amor gracioso que nos alcança sem imposições nos pede somente a fé como resposta.
Diante dessa provocação feita a nós no intuito de compreendermos e acolhermos as diferenças existentes nas nossas comunidades de fé, expando esse conceito para a Casa Comum e trago para a pauta a realidade da ecoteologia feminista decolonial posto que esta tem se mostrado uma frente importante na luta pela verdade e pela justiça de gênero em toda a América Latina.
Por que unir ecologia, teologia e feminismo? Quais são as interfaces que se cruzam e legitimam a enunciação desse discurso? Essas perguntas são legítimas e provocam a curiosidade de quem está em busca de novas portas de saída para as encruzilhadas que nos impôs a modernidade. No entanto, quando falamos em modernidade, precisamos considerar as palavras de Walter Mignolo pois trazem consigo uma perspicaz avaliação deste fenômeno à luz da perspectiva decolonial: “A minha visão de modernidade não é definida como um período histórico do qual não podemos escapar, mas sim como uma narrativa (por exemplo, a cosmologia) de um período histórico escrito por aqueles que perceberam que eles eram os reais protagonistas” (MIGNOLO, 2008 p. 316-317).
“Modernidade” nesse sentido é o termo no qual a narrativa hegemônica, disseminada pelos dominadores, espalhou uma visão heróica e triunfante da história que eles estavam construindo, em outras palavras, a história do capitalismo imperial pois à época do colonialismo do século XVI havia outros impérios que não eram capitalistas. Desta forma, a modernidade conforme se estruturou está baseada na colonialidade que por sua vez é definida pela cosmologia do imperialismo capitalista que tem em países como Portugal, Espanha, Inglaterra e Estados Unidos seu eixo central.
Isto posto, podemos afirmar que a modernidade em sua íntima ligação com o capitalismo pode ser melhor compreendida nas palavras de Karl Marx quando este apresenta uma nova e interessante definição de “transubstanciação”. Para o economista, o fato é que “a divisão do trabalho transforma o produto de trabalho em mercadoria, e, desse modo, torna necessária a sua transformação em dinheiro” (MARX, 1867). Essa “transubstanciação” macabra do produto do trabalho em dinheiro e a partir daí o desenrolar das consequências nefastas do processo de acúmulo das riquezas nas nações, é uma das principais engrenagens da Teoria do Sistema Mundo de Immanuel Wallerstein[1] que serve como uma boa lente de aumento para que melhor compreendamos a realidade, especialmente as desigualdades sociais estabelecidas no mundo globalizado.
Os padrões de troca desiguais entre países, pautados nas suas relações de interdependência onde os estados mais pobres se tornam submissos aos que têm mais posses, faz com que as formulações do ecofeminismo indiquem as maiores vítimas desta ciranda perversa – o corpo da terra e o corpo da mulher.
Nancy Cardoso aponta para o fato de que a domesticação e a subalternização dos corpos da terra e da mulher são partes de uma violência naturalizada, violência esta que considera a subordinação a um contexto cultural de exploração perversa e sacrifício compulsório, algo aceitável. Por isso, ela nos alerta e os responsabiliza: “nossa tarefa é a de deixar de reduzir a ideia de natureza a uma ‘bela mãe’ heterosexual e deixar de reduzir a maternidade/as mulheres a meio de produção” (PEREIRA, 2016, p. 36).
Historicamente a carga abusiva de trabalho, assim como a colonização e a cristianização empreendida a serviço do mercantilismo imperialista foram as grandes causas da degradação das mulheres, especialmente das indígenas de toda latinoamérica. Silvia Federici afirma com precisão que o capitalismo tem como um dos principais pilares, além do racismo, o sexismo visto que
precisa justificar e mistificar as contradições incrustadas em suas relações sociais – a promessa de liberdade frente à realidade da coação generalizada, e a promessa de prosperidade frente à realidade de penúria generalizada – difamando a “natureza” daqueles a quem explora: mulheres, sujeitos coloniais, descendentes de escravos africanos, imigrantes deslocados pela globalização (FEDERICI, 2017. p. 37).
Ora, em se tratando de América Latina, as mulheres indígenas foram as grandes vítimas do desrespeito a seus corpos, suas epistemologias, suas religiosidades e individualidades e desta forma, elas podem ser as maiores agentes de transformação por sua história de luta e resistência. Apesar de terem sido as pessoas as quais foram negadas a participação ativa como indivíduo autônomo na estrutura colonial, as mulheres indígenas seguem se posicionando ao lado de suas tradições, vivendo na prática do dia-a-dia a realidade da vivência decolonial a partir do solo de Abya Yala[2].
Como defende Mignolo, a grande ruptura ocorreu “no momento em que as histórias locais do mundo foram interrompidas pela história local da Europa, que apresenta a si mesma como projeto universal” (MIGNOLO, 2005, p. 216). O autor aponta que até mesmo a criação da idéia de América ‘Latina’ foi parte deste processo expansivo universal pois o ideal anterior, da colonização castelhana, que por sua vez não se concretizou, era o de uma América Cristã ou Hispânica. Mignolo complementa: “hoje, esta idéia está em processo de ‘desmontagem’ precisamente porque aqueles que foram negados – e àqueles que, no melhor dos casos, foi dada a opção de se integrar à colonialidade – hoje dizem: ‘Não, obrigado, mas não; minha opção é descolonial’ (MIGNOLO, 2005, p. 217).
Ivone Gebara conceitua o ecofeminismo “como pensamento e movimento social, (que) trabalha a conexão ideológica entre a exploração da natureza e das mulheres no interior do sistema hierárquico-patriarcal” (GEBARA, 1997, p.10). Para ela, o discurso teológico tem mudado sua perspectiva; antes concentrado na temática da justiça social fincada na análise econômica proveniente da colonialidade que herdamos como povo violentado pela espoliação de Abya Yala, agora tem sido provocado a expandir suas fronteiras não apenas por conta das questões levantadas pelo feminismo mas também pela situação da própria Terra: “ o destino de oprimidos (as) está intimamente ligado ao destino deste planeta vivo, vulnerável aos comportamentos destrutivos da humanidade. Por isso, falar de justiça social implica falar de ecojustiça e impõe uma mudança nos discursos e práticas oficiais das igrejas” (GEBARA, 1997, p 19). Nesta jornada em direção ao Reino de paz, justiça e alegria que dá ensejo a esse artigo, uma das maiores barreiras existentes na sociedade brasileira a impedir que os povos originários tenham uma vida digna, é a realidade das violências contra as mulheres indígenas que tem se perpetuado há séculos, por isso vamos analisar este aspecto mais a fundo.
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Priscilla dos Reis Ribeiro é Mestranda em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia (HCTE) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro onde sua área de interesse é Antropologia e Indigenismo; Mestre em Teologia Histórica pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Pós-graduada em Educação pela Harvard Graduate School of Education, Licenciada em Música pela Uni-Rio. É ecoteóloga feminista indigenista, articuladora de Direitos Humanos em diversos coletivos e membra associada do CESEEP.
[1] Immanuel Wallerstein desenvolve sua obra “O Sistema Mundial Moderno”, em 3 volumes, tendo por base o que a estrutura capitalista acarretou em termos de divisão internacional do trabalho. Desta forma, o mundo ficou dividido em três níveis hierárquicos a partir da sua situação econômica – centro, periferia e semi-periferia . Nessa estrutura, cada país tem uma função na ordem produtiva, sendo que os periféricos estão subalternamente fadados a fornecer commodities e matérias-primas para a produção dos países centrais que por sua vez encarregam-se da produção de alto valor agregado.
[2] Abya Yala na língua do povo Kuna significa “Terra madura”, “Terra Viva” ou “Terra em florescimento” e era o nome utilizado pelos povos originários para se referir a região que após as invasões européias passou a ser chamada de América, que segundo a maioria dos estudiosos, homenageia o navegador italiano Américo Vespúcio.