Em 23 de abril de 1616 – há exatos 400 anos – houve festa no céu. Com certeza, um grande sarau literário. Naquela data, dois gênios da literatura universal deixaram o nosso mundo, que tão bem retratam em suas obras: o inglês William Shakespeare e o espanhol Miguel de Cervantes.
Se considerarmos que o calendário gregoriano havia sido adotado no reino de Castela desde o século XVI, e pela Inglaterra apenas em 1751, Shakespeare teria vivido 10 dias a mais do que Cervantes.
Shakespeare, nascido em 1564, viveu 51 anos. Cervantes, nascido em 1547, 68. Talvez os dois tenham se admirado com a coincidência de data ao se evadirem dessa Terra tão atribulada, e felizes por, afinal, se conhecerem pessoalmente. E exultaram se comungavam a esperança expressada, séculos mais tarde, por Jorge Luis Borges: “Sempre imaginei que o Paraíso fosse uma espécie de biblioteca.” Espero que sim, pois nesse curto período de vida é impossível ler todos os livros que me atraem.
Shakespeare se casou aos 18 anos com a rica Anne Hathaway, de 26, que lhe deu três filhos: Susanna e os gêmeos Hamnet e Judith. Em Londres, trabalhou como ator e escritor. Até 1590, influenciado pelo teatro italiano, escreveu principalmente comédias, como A megera domada e A comédia dos erros.
O melhor de sua produção foi entre 1590 e 1613. Em 1595, Romeu e Julieta. Em 1599, Júlio César. De 1600 a 1608, Hamlet, Rei Lear e Macbeth. Ao longo da vida, produziu 16 comédias, 12 tragédias e 11 dramas históricos.
Machado de Assis teria buscado em Otelo a inspiração para criar o personagem Bentinho, do romance Dom Casmurro. E a revolta dos canjicas, na novela O alienista, seria a versão tupiniquim de rebelde Jack Cade, da peça Henrique IV.
O conto A cartomante, de Machado de Assis, abre com a famosa frase de Hamlet: “Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa filosofia.”
Cervantes, com sua obra-prima, Dom Quixote de la Mancha, é considerado o pai do romance moderno. Assim como a obra de Shakespeare consolidou o idioma inglês, a de Cervantes produziu o mesmo efeito no espanhol.
Em 1569, aos 22 anos, Cervantes se refugiou na Itália, após ferir um desafeto com quem duelou. Em 1571, participou da batalha de Lepanto, quando a esquadra formada por países cristãos derrotou os soldados do Império Otomano, de fé islâmica. Ferido, ficou com a mão esquerda inutilizada.
Ao navegar de Nápoles a Castela, em 1575, foi capturado por corsários argelinos, que o retiveram por cinco anos, até receberem o resgate. Viveu em Lisboa entre 1581 e 1583.
De retorno à Castela, casou com Catalina de Salazar, em 1584, aos 37 anos, com quem teve a filha Isabel. No ano seguinte, publicou seu primeiro romance, A galatea. Preso em 1597 por dívidas bancárias, durante o ano que permaneceu no cárcere esboçou o Dom Quixote, cuja primeira parte se editou em 1605 e, a segunda, dez anos depois. Escreveu também novelas, comédias e poemas.
Além da coincidência de falecerem na mesma data, Shakespeare e Cervantes foram mestres no modo de tratar temas políticos com refinado talento artístico e, ao mesmo tempo, dissecar as profundezas da alma humana.
Frei Betto é escritor, autor do romance “Minas do Ouro” (Rocco), entre outros livros.