Para justificar decepções e encobrir omissões, criamos estereótipos. Na atual conjuntura, a demonização da política e dos políticos. Tal maniqueísmo favorece exatamente o que se critica, a má política.
Distanciar-se da política é se refugiar em suposta redoma de vidro enquanto grassa o dilúvio. Muito pouca coisa é insubstituível na história humana. Uma delas é a política. Ainda não se inventou outra forma de nos organizar como coletividade. A política permeia todos os espaços pessoais e sociais, da qualidade do pão do café da manhã ao acesso à saúde e à educação.
Se a política é “a forma mais perfeita de caridade”, como enfatiza o papa Francisco, por ser capaz de erradicar a fome e a miséria, as estruturas políticas são passíveis de severa crítica quando favorecem a desigualdade e a corrupção.
A política não é intrinsecamente nefasta. Nefasto é o modelo político que sabota a democracia, privilegia a minoria rica, e nada faz de eficaz para promover a inclusão social. Ao contrário, permite ampliar a exclusão e reforça os mecanismos, inclusive repressores, que impedem os excluídos de avançarem da margem para o centro.
Todos os grandes mestres espirituais foram políticos. Buda se indignou ao transpor as muralhas de seu palácio e se deparar com o sofrimento dos súditos. Jesus, na versão de sua mãe, Maria, veio para “derrubar os poderosos de seus tronos e exaltar os humildes, despedir os ricos com mãos vazias e saciar de bens os famintos” (Lucas 1, 52-53). Pagou com a vida a ousadia de anunciar, dentro do reino de César, outro projeto civilizatório denominado Reino de Deus.
A política é uma exigência espiritual. Santo Tomás de Aquino preconizou não poder esperar virtudes de quem carece de condições dignas de vida. A política diz respeito ao outro, ao próximo, ao bem-estar da coletividade. Repudiá-la é entregá-la às mãos daqueles que a transformam em arma para defender apenas os próprios interesses.
Se a política perpassa os aspectos mais íntimos de nossas vidas, como dispor ou não de um teto sob o qual se abrigar das intempéries, nem todos participam do mesmo modo. Há múltiplas maneiras de fazer política, seja por participação, seja por omissão.
O modo mais universal é o voto, uma falácia quando o povo vota e o poder econômico elege. Um embuste quando a democracia é como Saci-Pererê: os eleitores decidem quem administrará o país, mas não como os recursos da nação serão utilizados.
Se não há democracia econômica, se a desigualdade se agrava, a democracia política é uma farsa. De que adianta a Constituição, uma carta política, proclamar que todos têm direito a uma vida digna se a estrutura socioeconômica impede a maioria de desfrutar de fato deste direito?
No reino de César, Jesus rogou ao Pai: “Venha a nós o vosso reino”, ou seja, o projeto civilizatório no qual todos “tenham vida e vida em abundância” (João 10, 10). Esta a espiritualidade que move quem se empenha em fazer da política ferramenta de libertação, não de opressão e exclusão.
Frei Betto é escritor, autor de “A mosca azul – reflexão sobre o poder” (Rocco)