Entrevista de Patrícia Fachin (Unisinos) com Paulo Suess
sobre o Sínodo Pan-Amazônico de 2019
1. Qual sua avaliação geral do documento preparatório para o Sínodo Pan-Amazônico, publicado no dia 8 de junho pelo Vaticano, em especial dos três conjuntos de perguntas que correspondem às diferentes partes do documento?
As perguntas anexadas ao “Documento Preparatório” para o Sínodo Pan-Amazônico podem ser ampliadas, resgatadas e contextualizadas pelas respostas. Revelam a atitude dos autores do texto que procuram iniciar um diálogo e não antecipar respostas.
A avaliação geral do “Documento Preparatório” depende de premissas que Kant (1724-1804), em suas três Críticas para o campo da filosofia assim formulou: Que podemos saber? Que devemos fazer? Que podemos esperar? Nos três campos – no saber, no fazer e no esperar – aguardam a Igreja tarefas gigantes, tanto na preparação do Sínodo como na sua realização, em outubro de 2019.
Que podemos saber? Um “Documento Preparatório” não deve substituir o próprio Sínodo com propostas concretas que se esperam das comunidades e lideranças das comunidades amazônicas. Hoje, os trabalhos científicos e os dados sociológicos, econômicos, geográficos e ecológicos sobre a Amazônia enchem bibliotecas. Menos conhecidos são a real história da Amazônia, suas culturas e o núcleo central dessas culturas, a sabedoria dos povos que habitam essa grande área. Mas essa lacuna sobre a Amazônia pode gradativamente ser superada através de uma metodologia participativa e sinodal que o “Documento Preparatório” e a própria organização do Sínodo propõem. Como o objetivo do Sínodo é refletir sobre “novos caminhos” da Igreja na Amazônia e, portanto, decidir sobre mudanças na prática pastoral, cabe a todos os envolvidos nesse Sínodo não somente invocar saberes teológicos construídos no decorrer dos séculos e indicar supostos limites de negociação para transformações pastorais, litúrgicas e teológicas, mas sobretudo procurar saber até onde certos saberes teológicos são históricos e não necessariamente normativos para todos os tempos. A “Igreja em saída”, que o Papa Francisco propõe, nos lembra que Jesus não foi pedreiro que construiu muros, mas carpinteiro que fez portas e janelas. Precisamos resgatar a liberdade do cristianismo dos primeiros séculos e do próprio Vaticano II, que nos falou da infalibilidade do povo de Deus no ato da fé (in credendo), porque “Deus dota a totalidade dos fiéis com um instinto da fé – o sensus fidei – que os ajuda a discernir o que vem realmente de Deus” (EG 119).
Que devemos fazer? Precisamos nos exercitar na escuta recíproca entre todos. Para a Igreja universal é de vital importância escutar os povos indígenas e as comunidades que vivem na Amazônia, como os primeiros interlocutores deste Sínodo. Nessa escuta, podem-se conhecer os desafios e encontrar os novos caminhos que Deus pede à Igreja. O Papa Francisco nos deu um exemplo quando veio ao encontro dos representantes dos povos da Amazônia, em Puerto Maldonado (Peru), não somente para “visitar”, mas para “escutar”. A escuta é um ato de fé e “requer um magistério eclesial aberto para a escuta do Espírito Santo, que garante unidade e diversidade” [60]. “É necessário que todos nos deixemos evangelizar por eles” (EG 198) e por suas culturas [75], que são “culturas do encontro” na vida cotidiana, nas quais se vive em “harmonia pluriforme” (EG 220) com “sobriedade feliz” (LS 224s) [cf. 4].
Que podemos esperar? A finalidade principal deste Sínodo é modelar uma Igreja com “rosto amazônico”, o que significa libertar o povo de Deus de todas as formas de alienação e neocolonialismo, que destroem sua biodiversidade pela imposição de modelos culturais (religiosos, educativos, econômicos, políticos) estranhos à sua vida. Ainda hoje existem restos do projeto colonizador que demoniza as culturas indígenas [cf. 24]. Ao Sínodo cabe, portanto, “colaborar na construção de um mundo capaz de romper com as estruturas que sacrificam a vida e com as mentalidades de colonização para construir redes de solidariedade e interculturalidade” [4]. Cabe aos padres sinodais fazer aparecer melhor o rosto amazônico da Igreja, ou seja, “aprofundar o processo de inculturação” (EG 126) [79] e denunciar profeticamente as situações de injustiça no mundo e na região [cf. 66].
As grandes distâncias geográficas da Amazônia produziram também grandes distâncias pastorais. O mistério da encarnação e a prática pastoral da inculturação apontam para a superação real dessas distâncias. Novas tecnologias (carros, canoas com motores sofisticados e internet) exercem um papel secundário nessa superação das distâncias geográficas e pastorais. O “Documento de Aparecida”, de 2007, descreve a defasagem entre exigências pastorais e realidade assim: “O número insuficiente de sacerdotes e sua não equitativa distribuição impossibilitam que muitíssimas comunidades possam participar regularmente na celebração da Eucaristia. Recordando que a Eucaristia faz Igreja, preocupa-nos a situação de milhares dessas comunidades privadas da Eucaristia dominical por longos períodos” (DAp 100e) [cf. 64]. A carência eucarística afeta mistérios centrais da vida cristã: A comunhão trinitária na Igreja “tem seu ponto alto na Eucaristia, que é princípio e projeto da missão do cristão” (DAp 153). Como as comunidades na Amazônia podem “viver sua fé na centralidade do mistério pascal de Cristo através da Eucaristia, de maneira que toda a sua vida seja cada vez mais vida eucarística” (DAp 251)? Espera-se do Sínodo que a Igreja possa gerar processos que respondam às realidades concretas dos povos amazônicos. Os “novos caminhos” ainda são devedores do Vaticano II, cujo Decreto “Presbyterorum ordinis” é taxativo:
“Nenhuma comunidade cristã se edifica sem ter a sua raiz e o seu centro na celebração da santíssima Eucaristia, a partir da qual, portanto, deve começar toda a educação do espírito comunitário” (PO 6). Espera-se do Sínodo coerência e relevância, coerência com as promessas e afirmações até normativas da Igreja e relevância para com os povos originários que nunca “estiveram tão ameaçados nos seus territórios como o estão agora” [24].
2. Quais são as três questões mais importantes do documento preparatório?
O “Documento Preparatório” com seu Questionário segue a inspiração do Papa Francisco, que já no primeiro anúncio da realização de uma Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a região Pan-Amazônica, no dia 15 de outubro de 2017, definiu como sua finalidade principal “encontrar novos caminhos para a evangelização”. O “Documento Preparatório” menciona 18 vezes esses “novos caminhos” para a evangelização da Igreja na Amazônia. Esses novos caminhos, marcados por três cuidados, são o fio condutor proposto para o trabalho do Sínodo Pan-Amazônico: o sujeito (os povos da Amazônia), a microrregião (rosto amazônico) e a macrorregião (novo estilo de vida de toda a humanidade).
– Primeiro, a questão dos sujeitos e protagonistas. O Sínodo está sendo realizado pelos bispos, para e com os povos amazônicos [1], cujas vidas são ameaçadas e cujos territórios são disputados [cf. 24]. Trata-se, portanto, de um protagonismo partilhado com todo o povo de Deus e de um caminhar sinodal. A participação dos povos amazônicos vai além de meras consultas, porque o povo de Deus é dotado com o “instinto da fé” (sensus fidei), que o torna infalível em seu conjunto (EG 119; cf. LG 12; DV 10) [61].
– Segundo, a construção de uma Igreja com rosto amazônico. A Igreja com rosto amazônico visa à construção de uma Igreja descolonizada, inculturada e contextualizada. Com esse pano de fundo, “urge avaliar e repensar os ministérios que hoje são necessários para responder aos objetivos de `uma Igreja com rosto amazônico e uma Igreja com rosto indígena´” [81]. Onde já se mostra este rosto amazônico e indígena é na presença e atuação das mulheres nas comunidades. A reivindicação de avançar na admissão de viri probati ainda é a reivindicação de uma Igreja clerical e machista de meio século atrás. Ao falarmos de uma Igreja indígena descolonizada haveremos de falar de viri probati e uxores probatae, de homens e mulheres que marcaram por longos anos sua relevância pastoral na Igreja. O “Documento Preparatório” não se antecipa a essas propostas, porém abre o caminho para elas.
– Terceiro, um novo estilo de vida de todos. Os “novos caminhos” não são caminhos paralelos que se encontram na eternidade, mas caminhos dialogais e interconectados. O processo de evangelização não pode ser separado do zelo pelas culturas, nem do cuidado com o território e a ecologia [cf. 52]. “`Tudo está interligado´ (LS 16, 91, 117, 138, 240) [cf. 48] é a grande insistência do Papa Francisco para facilitar o diálogo com as raízes espirituais das grandes tradições religiosas e culturais” [72]. Os “novos caminhos” convidam para um novo estilo de vida de “sobriedade feliz” [LS 224s], que assume a mística da interligação e interdependência de tudo que foi criado. Interligados são a mãe Terra e toda a humanidade, as religiões e os sonhos. Também a cruz e a ressurreição fazem parte da polaridade sinergética da vida. Ela nos permite “encontrar Deus em todas as coisas”, como os místicos Mestre Eckhart e Inácio de Loyola nos ensinaram. Seu lema, que pode nos inspirar para um novo estilo de vida, nos impulsiona a “praticar a solidariedade global” [74], viver a “corresponsabilidade no trabalho comum” [25] e superar a ação desordenada do ser humano face à natureza que ameaça o futuro de suas próprias condições de vida. “Encontrar Deus em todas as coisas” é uma chave importante para superar a “cultura do descarte” (LS 6) [2] e assumir “uma conversão ecológica que implica um novo estilo de vida, cujo foco é o outro. Urge praticar a solidariedade global e superar o individualismo, abrir novos caminhos de liberdade, verdade e beleza” [74].
3. Alguma questão importante não foi contemplada pelo documento?
O “Documento Preparatório” para o Sínodo não tinha a tarefa de contemplar todas as questões importantes e pertinentes para a região Amazônica. Seguiu-se a proposta do Papa Francisco de que “uma pastoral em chave missionária não está obsessionada pela transmissão desarticulada de uma imensidade de doutrinas […]; o anúncio concentra-se no essencial […]. A proposta acaba simplificada, sem com isso perder profundidade e verdade” (EG 35). De fato, nem as questões do trabalho nem as do ecumenismo ou as do diálogo inter-religioso foram aprofundadas. As questões realmente importantes para os povos da Amazônia (povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e afrodescendentes, a população rural e a dos centros urbanos) só saberemos depois da devolução do Questionário com respostas, propostas e novas perguntas.
4. O documento preparatório segue a metodologia “ver, julgar (discernir) e agir”. Qual é a importância desse método para esse Sínodo em especial?
A metodologia indutiva do “ver-julgar-agir”, que parte da realidade pluridimensional concreta, marca desde Medellín a teologia latino-americana. Já no início de seu pontificado, o Papa Francisco nos convida, no processo de evangelização, a assumir a cultura do outro e nos adverte: “Às vezes, na Igreja, caímos na vaidosa sacralização da própria cultura, o que pode mostrar mais fanatismo do que autêntico ardor evangelizador” (EG 117). Se a proposta para este Sínodo é a construção de uma Igreja com rostos amazônicos, que são muitos, e se o desafio da pastoral na Amazônia são as grandes distâncias, então, para superar as duas distâncias, a cultural, que “abrange a totalidade da vida de um povo” (EG 115), e a geográfica, que envolve as estruturas eclesiais e ministeriais, se oferece o método indutivo, que permite contextualizar o “ver, julgar (discernir) e agir”.
Contextualizar o cristianismo na Amazônia significa abrir “novos caminhos” no plural das culturas e de sua evolução histórica, porque “não faria justiça à lógica da encarnação pensar num Cristianismo monocultural” (EG 117). “Contexto” significa busca de proximidade para ver a pessoa e os povos em sua história, cultura, relações sociais e geografia, nas contradições de interesses, conflitos e poderes. Como se situar nesse mundo amazônico entre isolamento e aggiornamento? Como traduzir os artigos de fé, os sinais de justiça, as imagens de esperança e as práticas de solidariedade para os interlocutores do mundo tradicional e do moderno ao mesmo tempo? Como viver a inculturação da fé e a contraculturalidade do Evangelho? Como manter a Igreja universalmente unida e localmente enraizada? Precisamos um novo conceito de unidade na diversidade do Espírito Santo, porque “o cuidado da casa comum” inclui também o cuidado da casa de cada um.
5. Qual sua avaliação particular da dimensão bíblico-teológica do documento, especialmente em sua proposta de anunciar o Evangelho na Amazônia levando em conta uma dimensão social, ecológica, sacramental e eclesial-missionária?
Todas as dimensões mencionadas não são subdivisões da “dimensão bíblico-teológica” do documento, mas, dentro da metodologia do “ver, julgar e-agir”, da segunda parte do texto que trata do “II DISCERNIR (julgar) para uma conversão pastoral e ecológica”.
Se você pergunta por “minha avaliação particular” diria o seguinte: Eu tenho muitas razões para dar força ao texto assim como está. Que essa “conversão pastoral e ecológica”, em todos os subitens, é cinco vezes introduzida com o mantra de “Anunciar o Evangelho de Jesus na Amazônia” é uma falha estilística, não semântica, que poderia ser evitada por um título mais abrangente da segunda parte do Documento: “II. DISCERNIR. Para uma conversão pastoral e ecológica a partir do anúncio do Evangelho de Jesus na Amazônia”. O restante, encontrar em todas as cinco dimensões (na dimensão bíblico-teológica, social, ecológica, sacramental e eclesial-missionária) razões para a “conversão pastoral e ecológica” a partir do anúncio do Evangelho, é uma questão hermenêutica. Na dimensão bíblico-teológica destacam-se os mistérios da criação, da encarnação e da redenção como criação nova. A dimensão social enfatiza a “conexão íntima que existe entre evangelização e promoção humana” (EG 178) [42]. A dimensão ecológica remete ao “vínculo intrínseco entre o campo social e o ambiental” [49]. A dimensão sacramental é caracterizada por ”um modo privilegiado em que a natureza é assumida por Deus e transformada em mediação da vida” [57] e na vida sacramental se realiza a contemplação de Deus em todas as coisas. A dimensão eclesial-missionária articula “a participação de todos” no louvor a Deus com “a prática da justiça a favor dos pobres” [60] e “um grande exercício de escuta recíproca” [64]. As cinco dimensões “para uma conversão pastoral e ecológica” não são uma tempestade torrencial, mas uma chuva suave para regar os “novos caminhos” e absorver a poeira da estrada.
6. Que reações o senhor já percebeu acerca de como o documento preparatório para o Sínodo Pan-Amazônico está sendo recebido na Igreja brasileira, em especial na Amazônia? O que está sendo preparado para que os leigos tenham acesso ao questionário?
Faz tempo que existe junto à CNBB a Comissão Episcopal para a Amazônia e, desde o ano passado, também a Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM-Brasil), cujo presidente é o cardeal Cláudio Hummes. Ambos os organismos, através de Encontros e Assembleias territoriais, estão assessorando dioceses e comunidades da Pan-Amazônia e da sociedade brasileira nas questões ecológicas, econômicas e pastorais pertinentes a esta macrorregião. Na CNBB e nos organismos vinculados com ela, como no Cimi, o “Documento Preparatório” já era esperado, e está sendo divulgado pelos diferentes sítios na internet. A CNBB já imprimiu o documento e o enviou para as dioceses e prelazias. No Brasil, as respostas do questionário serão enviadas para o seguinte e-mail: sinodoamazonia@gmail.com . CNBB e REPAM-Brasil estão criando uma plataforma específica para a comunicação acerca do sínodo.
Ainda é cedo para registrar reações acerca do documento, sobretudo das comunidades, no interior do país, das quais se esperam respostas e propostas concretas, seguindo o convite do Papa Francisco, em Porto Maldonado: “Ajudai os vossos Bispos, ajudai os vossos missionários e as vossas missionárias a fazerem-se um só convosco e assim, dialogando com todos, podeis plasmar uma Igreja com rosto amazônico e uma Igreja com rosto indígena” [90]. Esta interiorização do documento, da discussão e do recolhimento das respostas através do questionário, que se espera até meados de janeiro, vai depender muito dos nossos e das nossas agentes de pastoral. Seria recomendável que cada região, diocese, paróquia ou comunidade constituísse um Grupo de Trabalho Sinodal (GTS) encarregado de fazer, no final do processo de recolhimento das respostas, uma síntese das respostas.
7. Como será feita a avaliação dessas respostas? Até que ponto a sinodalidade pode ser efetiva?
A partir de janeiro, o grupo de assessores do Sínodo vai sintetizar as respostas. Essa síntese exige muita sensibilidade, para não desfigurar as respostas por “valorizações” nas quais seus autores não se conseguiriam mais reconhecer. A partir dessa síntese, os assessores redigem o “Documento de Trabalho” que será discutido e aprovado pelo “Conselho Pré-Sinodal”. Depois, o “Documento de Trabalho” será enviado aos delegados do próprio Sínodo. Está previsto que todos os bispos e prelados da Pan-Amazônia serão delegados do Sínodo, além de representantes das Conferências Episcopais dos Continentes e da Cúria Romana.
Um sínodo não funciona como uma democracia liberal, mas como uma cooperativa. No Brasil, muitas cooperativas já fracassaram, enquanto outras deram bons resultados. A sinodalidade pode ser efetiva, perfeita não. Efetivo, o Sínodo Pan-Amazônico já se mostrou na elaboração do “Documento Preparatório”. Com as contribuições heterogêneas, que devem vir das bases da Igreja da Amazônia Legal, o desafio de um trabalho sinodal na elaboração do “Documento de Trabalho” pode ser maior, mas novamente efetivo e não perfeito. Se for perfeito, será o fim da história. Sendo efetivo, nos leva a alguns passos à frente, e o processo continua.
8. Quais são os documentos centrais que fundamentam teoricamente o Documento Preparatório para o Sínodo e que, certamente, vão fundamentar também o “Documento de Trabalho”?
Na busca de “novos caminhos” para a inculturação e descolonização da Igreja na Amazônia, o Sínodo se situa num processo que mais explicitamente começou com o Concílio Vaticano II (1962-1965). “A providência do Pai e a bondade da criação alcançam seu ponto culminante no mistério da encarnação do Filho de Deus, que se aproxima e abraça todos os contextos humanos, mas sobretudo o dos mais pobres. O Concílio Vaticano II menciona esta proximidade contextual com palavras como adaptação e diálogo (cf. GS 4, 11; CD 11; UR 4; SC 37ss) e encarnação e solidariedade” (cf. GS 32) [39].
No tempo pós-conciliar, a Igreja latino-americana assumiu intenções profundas do Vaticano II, cunhou expressões próprias e sacudiu as colunas de uma teologia dedutiva cristalizada. A teologia conciliar foi indutiva. A leitura latino-americana das palavras-chave dessa teologia indutiva, que constrói seu argumento a partir da realidade concreta (cf. GS 62,2), forjou a Teologia da Libertação e outras teologias contextuais, como, por exemplo, a Teologia Índia [cf. 82]. O processo pós-conciliar incorporou novos verbetes no dicionário teológico-pastoral: “libertação” e “opção pelos pobres” (Medellín, 1968), “participação”, “assunção” e “comunidades de base” (Puebla, 1979), “inserção” e “inculturação” (Santo Domingo, 1992), “missão”, “testemunho” e “serviço” de uma Igreja samaritana e advogada da justiça e dos pobres (Aparecida, 2007).
Desde as “Conclusões de Santo Domingo”, o magistério latino-americano acrescentou, explicitamente, ao paradigma da libertação o paradigma da inculturação. A inculturação da fé e de todas as atividades eclesiais que emergem dessa fé (pastoral, liturgia, teologia, anúncio, missão, obras sociais), são “imperativos do seguimento de Jesus” (DSD 13) que redimiu a humanidade na proximidade histórico-cultural da encarnação. O paradigma da inculturação, na síntese do DAp, foi novamente proposto como caminho para expressar cada vez melhor a catolicidade. Palavras como “assumir” (DAp 280b, 330, 348), “contexto” (DAp 276, 331), “inserir” (DAp 329, 517h) e “presença” (DAp 215, 474b) pertencem ao campo semântico da inculturação: “Com a inculturação da fé, a Igreja se enriquece com novas expressões e valores, manifestando e celebrando cada vez melhor o mistério de Cristo, conseguindo unir mais a fé com a vida e assim contribuindo para uma catolicidade mais plena, não só geográfica, mas também cultural” (DAp 479).
Para a Igreja universal, esse processo de busca de “novos caminhos” estava também presente no Sínodo sobre “a nova evangelização para a transmissão da fé cristã”, de 2012. A Exortação Apostólica Evangelii gaudium (2013), do Papa Francisco, “sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual” concretizou as propostas do Sínodo sobre a Nova Evangelização e fez dos “novos caminhos” o fio condutor do seu pontificado (cf. EG 14). A Evangelii gaudium, com suas palavras-chave de “diálogo” (EG 142), “encontro” (EG 239) e “Igreja em saída” (EG 20ss), ofereceu novos verbetes para o dicionário teológico-pastoral. O “Documento Preparatório” está familiarizado com esses paradigmas que, em seu conjunto, estão presentes na proposta dos “novos caminhos” para o Sínodo. A convocação do próprio Sínodo só é possível no interior desse processo do qual o Papa Francisco é o avalista aglutinador.
Nos documentos centrais, que fundamentam o “Documento Preparatório”, está presente a memória histórica do povo de Deus que lembra a Igreja de promessas cumpridas e de outras, ainda não cumpridas, no decorrer de uma longa caminhada. O Sínodo Pan-Amazônico é herdeiro dessa caminhada. O Sínodo, em relação à Igreja, é como o anjo que tocou o profeta Elias e disse: “Levanta-te e come! Ainda tens um caminho longo a percorrer”. O profeta levantou-se, comeu e bebeu e, com a força desse alimento, andou quarenta dias e quarenta noites, até chegar ao Horeb, monte de Deus” (1Rs 19,8). O Sínodo pode ser o anjo que nos toca. Os “novos caminhos” são lembrete desse longo caminho pelo deserto, mas também promessa da realização da utopia do Horeb e do Reino.