Com os engarrafamentos na cidade e na marginal do Tietê cheguei bem atrasado ao aeroporto de Guarulhos, para o embarque para o Sínodo em Roma, via Lisboa. Estava esperando-me aflito diante do despacho da TAP o Nelson Tyski da Verbo Filmes, com mais de 130 livrinhos do Ofício dos Mártires da Caminhada: “Vidas pela vida, Vidas pelo Reino, Vidas pela Amazônia”, saídos diretamente da gráfica para o aeroporto. Foram impressos pela Congregação do Verbo Divino, depois de preparados com carinho pelo Mirim (Pe. Laudimiro Borges) da Rede Celebra, com a ajuda de muitas outras mãos no Equador, Colômbia, Venezuela, Bolívia, Itália e Brasil afora.
Devia acomodá-los na mala extra que trazia e levá-los para as celebrações dos mártires da Amazônia, na Tenda Amazônia Nossa Casa comum armada na Igreja Santa Maria in Traspontina, na Via della Conciliazione, entre a ponte de Sant’Angelo e a Praça de São Pedro. A cada dia, está previsto que se celebre naquele espaço um ou uma mártir de algum dos nove países da bacia amazônica que estarão presentes no Sínodo: Guiana Francesa, Suriname, Guiana, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia e Brasil. A primeira a ser celebrada será a Ir. Dorothy Stang friamente assassinada em Anapu, PA, a 12 de fevereiro de 2005, por pistoleiro contratado por fazendeiros e grileiros de terra na região.
No passado, no alvorecer da colonização, matava-se, para se apropriar da terra, escravizar indígenas, apoderar-se do ouro e da prata. Mais recentemente, matou-se por conta os que se insurgiram contra as injustiças sociais e a repressão política de todo um povo nas ditaduras militares, como Dom Oscar Romero, em El Salvador. Agora se mata na Amazônia e alhures os que se colocam na defesa do meio ambiente, denunciando o desmatamento, a contaminação dos rios, a invasão das terras indígenas, o despejo violento de posseiros, ribeirinhos, quilombolas, para a exploração da madeira, de minérios, petróleo, gás e implantação de grandes projetos de hidroelétricas, hidrovias, estradas de ferro e rodovias.
Enquanto corria para o portão de embarque, fiquei pensando que naquela hora, de muitos igarapés e rios da Amazônia estavam descendo de barco, representantes dos povos indígenas, missionárias e missionários, bispos diáconos, leigos e leigas na direção de Manaus no Amazonas, Belém, no Pará, São Luís no Maranhão, para pegarem um voo para o Sínodo em Roma.
Faziam o caminho inverso das caravelas, que partiram das praias do Tejo em Lisboa nos séculos XVI e XVII para colonizar o nordeste, o sul e depois o norte da que foi chamada Terra de Santa Cruz, Terra da Vera Cruz, Terra dos Papagaios e finalmente Terra Brasilis. Impunha-se assim o reconhecimento de sua inexorável inserção no mercantilismo das grandes navegações. A mercadoria que passou a predominar no escambo com os indígenas, o pau-brasil, forçou a troca do nome de Terra de Santa Cruz dos que sonhavam em dilatar a fé, para o de Brasil, expressão do cru realismo da economia e da implantação do império. O pau brasil e não a cruz, inscreveu-se na ata de nascimento e mesmo de batismo desta terra por conta de uma igreja que se tornou instrumento e aliada do estado, no seu projeto de “dilatar a fé e o império”.
Para surpresa minha, a revista de bordo da TAP para o mês de outubro estampava um rosto e um corpo imaginários coberto por pintura corporal indígena e levava por título: Belém do Pará – Embarque para a Amazônia.
A reportagem assinalava que ali, onde se encontra a acanhada cidade velha, que se chamou Santa Maria de Belém, levantou-se a primeira edificação europeia na Baia do Guajará, o Forte do Castelo do Senhor Santo Cristo do Presépio, ponta de lança da Feliz Lusitânia. Deve-se sempre perguntar: feliz para quem? Para os povos indígenas ou para os colonizadores? A revista acrescentava: “Aqui chegaram em 1616, menos de 200 homens vindos do Maranhão à conquista da boca do Rio Amazonas. Construíram este forte para a defesa dos indígenas, os guerreiros tupinambás…”.
O que não se diz é que precisavam sim se defender dos tupinambás, depois de ocupar com violência suas terras em torno da baia, promover uma limpeza étnica e estabelecer um amplo arco de segurança, arrasando suas aldeias e promovendo o massacre de cerca de trinta mil indígenas, fato denunciado e fortemente condenado pelos primeiros missionários franciscanos que chegaram nessa área.
O forte, um ferrolho na margem sul do rio Amazonas, serviu em seguida para repelir os franceses que desciam da Guiana francesa para a foz do Amazonas, onde eram contidos pelo forte de Macapá no braço norte do rio. Serviu também na tentativa fracassada de barrar a entrada dos holandeses que chegaram a levantar um fortim na entrada do Rio Tapajós. Seguiu sendo útil de todos modos, para impedir o assalto de corsários ingleses, franceses, holandeses ao entreposto comercial de toda a bacia amazônica em que Belém se transformara.
Durante o voo e na troca de aeronave no aeroporto de Lisboa, experimentava de novo o estranhamento do meu primeiro contato com Portugal em 1965, o de sentir-me como que estrangeiro dentro do meu próprio idioma, ao topar com o uso inusitado, para nós brasileiros, de palavras ou expressões, portanto corriqueiras na linguagem corrente, como o de chamar a estação de trem, de “gare do comboio”, o vagão de “carruagem” o assento do avião de “cadeira” e assim por diante. Quanto ao entrecortado sotaque português, que vai comendo as vogais e o brasileiro que as vai alongando, valho-me da observação certeira da celebrada poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen:
“Gosto de ouvir o português do Brasil, onde as palavras recuperam sua substância total, concretas como frutos, nítidas como pássaros. Gosto de ouvir as palavras com suas sílabas todas, sem perder sequer um quinto de vogal”.
De Lisboa, levantando voo ao sol nascente, podiam se ver os sinais da crise ambiental, um dos temas centrais do Sínodo da Amazônia, quando nos conclama a buscar novos caminhos para uma ecologia integral. A primeira ameaça é crescente escassez de água doce e sua contaminação. Por todo lado, o chão bastante seco que íamos sobrevoando de Portugal e da Espanha, rumo ao leste, brilhavam inúmeros espelhos d’água. Indicavam o esforço para armazenas água de pequenas nascentes e riachos, para dessedentar os rebanhos e irrigar os plantios agrícolas.
Eram igualmente visíveis os esforços para se mudar a matriz energética dos combustíveis fósseis para energias renováveis. Surgiam aqui e ali as altas torres de parques eólicos e também grandes extensões de terreno cobertas de placas fotovoltaicas para a produção de energia elétrica. Avistei apenas um complexo de altas chaminés expelindo fumaça branca, que se não fosse uma fábrica, podia ser um remanescente de usinas termoelétricas a carvão ou óleo diesel.
Logo depois tocamos o solo romano no aeroporto de Fiumicino, para o início da jornada do Sínodo Panamazônico de 06 a 27 de outubro.
Crônica No. 00 para o Boletim Rede dos Cristãos
Roma, 03 de outubro de 2019
Padre José Oscar Beozzo é historiador e coordenador geral do CESEEP.
Como filha da Amazônia Legal, sinto-me em Roma nesse encontro singular. O Sínodo da Amazônia partiu a história ao meio e será lembrado como o maior e mais importante encontro deste milênio!