Neste final de semana (de 12 a 14 de julho), no encontro nacional que se realiza em Natal, RN, o Movimento Fé e Política celebrou os seus 30 anos de vida e de atuação no caminho da transformação da sociedade e da proposta de espiritualidade libertadora.
Para quem viveu no Brasil nesses últimos 30 anos sabe o que significa de vitória o fato do Movimento estar vivo, forte e fiel às propostas iniciais. 1989 foi o ano da eleição vencida por F. Collor, derrotando a esquerda por meio de uma campanha midiática enganadora. Sofremos também a derrota política e de credibilidade da Frente Sandinista na Nicarágua. Por fim, foi o ano da queda do muro de Berlim , que marcou o desmoronamento do socialismo soviético no leste europeu.
O Movimento Fé e Política já nasceu com o desafio de distinguir o que não deu certo nas experiências ditas socialistas e a utopia de um novo Socialismo, que radicalize a democracia e una a luta pelos direitos humanos, individuais e coletivos ao Bem Viver de todos os seres vivos e cósmico.
Nesses 30 anos, cada encontro, seminário de estudo ou retiro que se faz, de âmbito nacional ou local, é sempre experiência marcante que sinaliza uma profecia encantadora. O mais impressionante é que o Movimento Fé e Política faz tudo isso com pouca estrutura e sem dinheiro. Assim, tem formado lideranças jovens e dado apoio a companheiros e companheiras que, a partir da fé, se engajam nos diversos campos da Política: parlamentar, executivo, sindical, de movimentos sociais, ONGs e outros. Parabéns a todos os companheiros e companheiras que iniciaram esse movimento e a todos/as os/as que mantêm seu espírito profético.
Trinta anos é a idade com a qual, conforme a tradição, Jesus iniciou sua missão pública de profeta e testemunha da realização revolucionária do reino de Deus no mundo. Sem dúvida, muitos de seus contemporâneos esperavam que ele liderasse uma revolta política contra o Império Romano. No entanto, mesmo assumindo muito da causa zelota, a atuação de Jesus foi em um plano mais profundo e mais amplo. Na sociedade da época, Jesus propôs uma transformação radical na forma de crer e de falar de Deus. Ele demoliu a figura de um Deus todo-poderoso que legitimava os poderosos. Apresentou Deus como Amor, portanto, como Anti-poder. Tirou Deus da gaiola na qual as religiões o colocam ao aprisioná-lo nos templos, como objeto de culto e sacrifício. Chamou-o de Paizinho. Ensinou os discípulos a orar na natureza e sem cerimônia, simplesmente entrando no mais íntimo de si mesmo e invocando-o carinhosamente como Pai Nosso.
Essa revolução na forma de crer e de falar de Deus dá o testemunho de que sagrada é a Vida, humana ou de outro tipo. Revela que Deus está em nós. Como no século IV, dizia Santo Agostinho: “mais íntimo a nós do que nós mesmos”. Essa presença amorosa do Espírito em cada pessoa e no universo possibilita a liberdade em relação às instituições ao mesmo tempo que une intimidade divina e cuidado com a natureza. Esse princípio divino do Amor em nós não deve ser um intimismo que resvala para o individualismo. Precisa expressar-se social e politicamente: a revolução interior produzida em cada um só se realiza quando nos colocamos no serviço uns dos outros e no esforço comunitário por transformar o mundo.
A dimensão social libertadora da fé e da espiritualidade é a espinha dorsal do Movimento Fé e Política. Ela não se desliga da busca de relação direta com Deus, mas, conforme o evangelho, a antecede. De acordo com a carta de João, quem não ama o seu irmão a quem vê não pode amar a Deus a quem não vê. O próprio Jesus falou claro: “O que, em meu nome, fizerdes a um desses pequeninos é a mim que fazeis”. Essa dimensão do amor solidário não consiste apenas na compaixão por quem sofre. Trata-se de uma liga essencial que faz de seres diferentes uma só unidade.
Mais ainda do que em 1989, a complexidade social e política do mundo pluralista em que hoje vivemos exige de nós ação conjunta e com a característica de diálogo intercultural e inter-religioso. Mesmo se nem todas as religiões e tradições espirituais usem o termo fé, o Movimento Fé e Política lembra que todas nasceram a partir da preocupação do amor social e da solidariedade, como caminhos de intimidade com o Divino.
Por isso, o caminho é buscar unir Igrejas, religiões e mesmo as pessoas que buscam o Amor fora das estruturas religiosas. Além de ser exigência da conjuntura social e política, a preocupação de ultrapassar as fronteiras de uma Igreja e mesmo de uma religião é o próprio coração da espiritualidade sócio-libertadora. É sua dimensão fontal: é intrínseca e essencial a essa espiritualidade ser saída ao encontro do outro, porque é a abertura e a experiência de alteridade que a alimenta.
O papa Francisco propõe uma Igreja em saída. Isso só se realizará em cada comunidade eclesial e no próprio Movimento Fé e Política quando esse “em saída” se tornar modo de viver a fé e de expressar a espiritualidade. A espiritualidade será em saída quando for plena e radicalmente ecumênica. Mesmo no dia a dia corriqueiro de cada pessoa e grupo eclesial (por exemplo, quando formado somente por católicos) busque-se sempre e cada vez mais que cada expressão da fé se enriqueça com elementos de outras Igrejas e outras expressões religiosas. A perspectiva não é apenas a unidade das Igrejas e sim o ecumenismo do reino de Deus, ou seja, a construção no mundo do projeto divino da paz, justiça e comunhão com o universo. É o que no século XVII, o filósofo judeu-evangélico Baruch Spinoza chamou de “comunismo do espírito” (Cf. Donati Caleri, Spinoza e Zen Budismo, Ed. 7 Letras, 2019, p. 125).
Marcelo Barros, monge beneditino, teólogo e biblista, assessor das comunidades eclesiais de base e de movimentos sociais. Tem 55 livros publicados, dos quais o mais recente é “Conversa com o evangelho de Marcos”. Belo Horizonte, Ed. Senso, 2018.