Nos ritos sociais da festa de Ano Novo, as famílias se reúnem para o réveillon, abrem garrafas de champanhe e se abraçam com os mais sinceros desejos de um feliz 2020. A televisão mostra como pelo mundo inteiro, ocorrem espetáculos de luzes e esplendor. Oráculos predizem a sorte e jogam búzios para ver como será esse novo ano. Nas praias, se oferecem flores a Iemanjá e quem é mais ligado à Igreja, se reúne em vigília pela paz do mundo.
O ano novo lembra ritos de culturas mais antigas. Em algumas tribos, as pessoas jogam fora roupas velhas para significar o desejo de ser transformados. Outros grupos costumam peregrinar a uma alta montanha ou banhar-se no rio ou no mar, no primeiro momento do ano, para acolher o tempo novo dado por Deus.
As comunidades judaicas celebram o ano novo em setembro. Mas, por algum tempo, o antigo povo bíblico celebrava o ano novo na primavera. Era a Páscoa. Naquele tempo, o fermento que se tinha era o da massa de pão que, cada vez, ia se misturando com a massa nova. Por isso, o fermento era símbolo de corrupção e mentira. Até hoje, nos dias da Páscoa, as famílias judaicas eliminam das casas todo o fermento. Nas sinagogas antigas, o rabino sugeria o que Paulo escreveu: “Joguem fora de suas vidas o fermento da malícia e da corrupção para serem uma massa nova, como pão ázimo (não fermentado) na sinceridade e na verdade” (1 Cor. 5, 7).
Nas sociedades antigas, o rito ocupava um espaço central e era elemento de unidade e de renovação. De certa forma, correspondia ao que, nas sociedades atuais seriam técnicas e dinâmicas de terapia comunitária. Evidentemente, não serão apenas ritos e gestos que vão garantir que os nossos desejos de um ano novo mais feliz e de paz se cumpram. É importante que os nossos ritos do ano novo sejam marcados pelo amor e pela solidariedade e não pelo consumismo que reforça a desigualdade social e as injustiças. Se a noite do Ano Novo consistir apenas em comilanças e bebedeiras, que esperança podemos ter de um ano novo de paz e felicidade para a terra e os que nela habitam?
Em termos de Brasil, 2020 só será um ano mais feliz se conseguirmos superar o ambiente de ódio, intolerância e indiferença com os sofrimentos humanos que os meios de comunicação de massa e o império conseguiram disseminar na sociedade e mesmo nas famílias. Mesmo nas Igrejas cristãs ainda predomina a visão de um Deus narcisista e intransigente, amigo de seus amigos e implacável com quem não segue as normas de sua Igreja. No plano político, a elite sempre garante seus interesses. Os movimentos sociais tentam recompor sua unidade e reconstruir na sociedade o senso de cidadania e a dignidade da Política. Em outubro próximo teremos novas eleições municipais e podem ser importantes para garantir novas bases para uma transformação social e política cada vez mais urgente. No entanto, a Política terá de ser principalmente o cuidado com o bem-comum. Nas cidades, como em nossas casas, organizemos a vida a partir da solidariedade. Se fizermos isso, vamos experimentar o que diz o Novo Testamento: “Há mais alegria em dar do que em receber”. A maioria festejará a vida e a paz que virão através da justiça. Assim, nesta noite de ano novo, cada pessoa poderá dizer ao seu vizinho uma antiga bênção irlandesa: “Que o caminho seja brando a teus pés. O vento sopre leve em teus ombros. Que o sol brilhe cálido sobre tua face, as chuvas caiam serenas em teus campos. E até que, de novo, eu te veja, que Deus te guarde na palma da sua mão”.
MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 57 livros publicados. O mais recente é Teologias da Libertação para os nossos dias (Vozes).