Foi tudo tão rápido que nem sei onde e quando começou. De repente havia um inimigo à solta. Começou na China, estava longe. Depois atingiu outros países da Ásia. Quando chegou à querida Itália começamos a tremer. E quando percebemos estava instalado no país. Junto com ele, a apreensão e o medo.
O vírus não tem rosto, é insidioso. Infiltra-se pela mão mal lavada, um toque no rosto, um gesto distraído nos cabelos. Alia-se aos gestos mais cotidianos e normais: a maçaneta aberta, o botão do elevador pressionado. Ou mais ainda nos gestos afetivos: apertos de mão, abraços, beijos, tudo que aproxima, conforta e afaga os corpos e corações humanos.
Diziam primeiro que era mais inofensivo que as gripes anteriores, depois percebeu-se que na verdade não era assim. Assaltou violentamente nossos mais inofensivos desejos: estar juntos, conversar, partilhar comida e bebida, divertir-se. Feriu de morte tudo que é lazer: festas, reuniões, eventos. De repente o inimigo sem rosto, se não estava já instalado no próprio corpo, alojava-se ameaçadoramente no corpo do outro.
E então os cientistas, governantes e autoridades começaram a dar-nos orientações totalmente na contramão do que sempre acreditamos ser correto fazer: isolar-se, afastar-se, fechar-se, não sair de casa. Não ir ao encontro das pessoas, não abandonar seu confinamento por nada. Parecia tão monstruoso, tão fora de propósito. Mas agora, após vários dias da quarentena que é nosso único caminho de salvação, começamos a aprender muitas lições.
A primeira é que a antropologia filosófica e teológica, a psicologia e todas as ciências humanas não podem estar mais certas. Somos indubitavelmente seres relacionais. Apenas na interação com o outro nos sentimos existindo plenamente em nossa humanidade. É isso que nos faz o que somos: seres dialogais, de linguagem, feitos para interagir, conviver, trocar experiências. Seres que se autocompreendem a partir do rosto do outro e dos sinais que ele emite.
A segunda é que nunca ficou tão evidente que tudo e todos naquilo que se chama de vida estão interligados. Tanto se desequilibrou a natureza, tanto se agrediu a mãe terra, a casa comum, os recursos naturais, em suma tanto se desumanizou a vida que agora vemos as forças da morte emergindo do caos que nós mesmos criamos. A pandemia apocalíptica que nos ameaça dá bem a medida do tamanho da irresponsabilidade com que vimos tratando a vida, não só a nossa, mas a do planeta e a de todos os seres vivos.
No entanto, há também boa notícia – Evangelho – em meio a tanta desolação e tristeza. O medo e a morte não têm a última palavra em todas as situações. A coerção dura sobre a expressão da relacionalidade fez em muitos casos surgir – que maravilha! – uma criatividade nunca vista em expressão dessa mesma relacionalidade. E isso só comprova a tese antropológica que apenas na relacionalidade somos, nos movemos e existimos.
Senão vejamos: moradores confinados vão às janelas para cantar, aplaudir os profissionais de saúde, acenar a vizinhos que mal se cumprimentavam antes, freneticamente correndo para produzir e fazer dinheiro. Jovens anônimos se oferecem por meio de bilhetes para fazer as compras do mercado a fim de que os anciãos, mais ameaçados pela doença, não precisem sair de casa e fiquem protegidos. Os avós, sofrendo por não poder ver e abraçar os netos, recebem destes vídeos amorosos, cheios de carinho, beijos, afeto.
Mas há mais ainda: os profissionais da saúde arriscam as vidas até o extremo para não deixar de atender os doentes, correndo a cada momento risco de contaminação. Médicos são infectados na linha de frente. E com eles, enfermeiros e agentes de saúde que priorizam a saúde alheia e dão testemunho heroico de solidariedade. Muitos destes sucumbiram à carga viral. Médicos e agentes de saúde cruzam os ares para ajudar outros países, carentes de recursos. Tenores emprestam a voz para encher os ouvidos temerosos de más notícias com uma renovada esperança.
Na combalida Itália, sempre tão ensolarada e alegre, um sacerdote já idoso faz um gesto de santidade, cedendo seu respirador para que outro doente, mais jovem e com mais perspectiva de vida, possa usá-lo. O Papa Francisco, idoso e sem boa parte de um pulmão, peregrina pelas ruas de Roma vazia a fim de rezar pelo povo que geme sob a pandemia.
Tudo é relação e dela depende. Tomara que a humanidade saia dessa crise iluminada por todos esses ensinamentos e revigorada por tantos testemunhos, mesmo em meio ao caos que alguns poucos irresponsáveis insistem em instalar e estimular.
Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), entre outros livros