Entrevista publicada originalmente no portal Brasil de Fato em 20 de Novembro de 2020
Hoje, dia 20 de novembro, é o dia da Consciência Negra. Data que honra Zumbi dos Palmares, uma das grandes figuras da luta contra a escravidão no Brasil.
A luta de Zumbi dos Palmares segue viva, visto que um dos legados que o colonialismo deixou no Brasil foi o racismo estrutural. A pauta antirracista é fundamental na luta de classes e, como diria Silvio de Almeida, “não há democracia sem luta antirracista”. Esse elemento perpassa também a religiosidade e suas relações.
Em janeiro de 2020, o Datafolha lançou o resultado de uma pesquisa realizada entre 5 e 6 de dezembro de 2019, com 2.948 pessoas entrevistadas de 176 cidades por todo o país sobre a fé evangélica.
Embora o rosto midiático do movimento evangélico seja de homens brancos raivosos, o rosto evangélico, apontado pela pesquisa, é a face de uma mulher negra, visto que 58% dos evangélicos são mulheres, entre as quais 43% se identificam como pardas e 16% como negras.
São elas que encontram na religião a reorganização da vida cotidiana, tantas vezes desordenada; é o lugar onde encontram refúgio para reinventarem a própria vida.
A teologia negra tem sido uma bandeira dos movimentos religiosos que reivindicam a negritude nas narrativas bíblicas, entendendo o povo preto, periférico, como um povo de fé que, no entanto, nunca se enxergou nessas narrativas. Hegemonizaram a cor dos personagens bíblicos e o povo preto foi invisibilizado.
O teólogo Ronilso Pacheco, em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos (IHU), disse que “enquanto a intelectualidade e a academia faziam observação antropológica do lugar da religião na vida do povo oprimido, o povo apenas vivia e sobrevivia, criava sua própria expertise e formas de driblar as opressões”.
Neste sentido, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social entrevistou a pastora metodista Eliad Santos, que nos conta, a partir de suas vivências, aspectos da teologia negra, racismo e movimentos sociais.
Eliad Dias dos Santos é teóloga e mestre em Ciências da Religião. Atua como pastora da Igreja Metodista na Luz em São Paulo. Coordena o Projeto Casa na Luz, que atende mulheres e crianças em situação de refúgio e migração.
Este ano, a pastora compôs a Bancada Evangélica Popular, importante movimento de esquerda que nasce em contraponto aos religiosos conservadores, ampliando a visibilidade do evangelismo progressista e, por isso, tem sido atacado por grupos conservadores em suas redes sociais.
Confira a entrevista:
Tricontinental: Pastora, qual sua trajetória dentro do cristianismo a partir da sua ancestralidade? Como foi o processo de reivindicar essa identidade de mulher negra cristã na sua comunidade de fé?
Eliad Santos: Minha avó, com 12 filhos, adventista, que se casou com um batista, da antiga Força Pública, moravam próximo ao quartel [Rondas Ostensivas Tobias Aguiar – Rota) Bom Retiro e descobriram uma igreja metodista em construção. Ajudaram a construir a igreja, a família cresceu, casou-se, e se batizou na igreja Metodista na Luz.
Aos 9 anos, decidi que queria ser membro da igreja e fiz a profissão de fé. Queria ser uma autêntica filha de Deus. Depois com as leituras das revistas Nova da minha prima, fui descobrindo Carmem Silva, Rose Marie Muraro e outras feministas da época, daí fui perguntando o que era ser mulher na igreja.
Não tinha ainda a consciência da negritude, sabia que era diferente, mas não sabia o quanto a negritude influenciava na minha vida, ou seja, o quanto eu perdia ou ganhava por ser negra. Achava que era castigo ou ausência de Deus. Mais tarde, reverendo Santana, ligado ao Conselho Mundial de Igrejas, iniciou um processo de trabalhar bíblia e negritude, racismo nas igrejas e um dos locais escolhidos foi a igreja da Luz.
Minha mãe tinha uma consciência enorme sobre negritude, racismo e isso ajudou muito na minha formação também. Foi bom ter a consciência e doloroso saber que muitas coisas eu não poderia ter ou ser na vida, devido minha etnia. Não era pobre de tudo, tive uma infância classe média até minha mãe se separar do meu pai. Aí decidi que só tinha um caminho, lutar, militar no PT, acompanhar o movimento feminista, depois os das mulheres negras e sobreviver.
O que é a Teologia Negra? Quais os pressupostos, hermenêuticas e reivindicações?
Teologia negra é a forma que a comunidade negra encontrou para sobreviver na igreja cristã [risos]; para mim hoje é isso. Foi preciso enegrecer Deus, acreditar que o libertador parece conosco para que continuemos cristãos, com esperança de dias melhores, de uma outra vida sem dor, sem indiferença, de um Deus que nos ama e cuida de nós.
Teologia negra para mim, como qualquer outra, deve partir da experiência concreta. Lembro do Natal aqui na igreja para população de rua. Fizemos a ceia e convidamos o pessoal para comer aqui no salão. Eles não acreditavam que seria um jantar de Natal, olhavam com desconfiança; afinal de contas, eles recebem comida na rua, pronta, sem perguntar se gostam de frango, carne, maionese, etc.
O problema é que a branquitude não quer enxergar as diferenças, pois terá que rever seus privilégios, as diferenças e sair da zona de conforto sem confronto é difícil
Maria, a mulher negra usuária de crack, pediu para orar, várias vezes. Ela agradeceu pelo espaço, pelo jantar e a oportunidade em ser vista e tratada como gente, não como bicho, porque ela podia sentar-se com seu companheiro para comer, como as outras pessoas.
Choramos muito de emoção e choro até hoje. Vi outro dia, um homem negro, morador de rua, cantando hinos nas ruas, cantando alto, como fiz muitas vezes, para acalmar a dor, para ter esperança, para chorar e pedir misericórdia.
O problema é que a branquitude não quer enxergar as diferenças, pois terá que rever seus privilégios, as diferenças e sair da zona de conforto sem confronto é difícil. Quando olharmos com outros olhos para outros corpos não brancos, tudo ficará mais fácil, quer dizer, fará outro sentido.
Os discursos mais conservadores refutam a ideia de racismo, justificando que todos somos uma mesma raça, a “raça humana”, muitas vezes usando a Bíblia para essa justificativa. A Bíblia pode nos ajudar a aprofundar esse debate?
Tenho uma certa resistência em usar só a Bíblia; precisamos resgatar outras histórias. Por exemplo, mostrar para mulheres negras a força da [escritora] Carolina de Jesus, que viveu na favela, escreveu, não está viciada.
Ótimo falar da Agar, de um novo lugar para mulheres negras, mas precisamos falar da Agar como a outra, a amante que foi mandada embora, que teve que assumir o filho sozinha, e no deserto, apareceu um anjo que a iluminou, caminhou com ela.
O sobrenatural nos impede muitas vezes de agir, esperamos o milagre que não virá, a não ser que a gente se mate de trabalhar e enfrentar. É preciso dar cor, força para as figuras bíblicas e poucas pessoas conseguem dar este passo, acabam ficando no mesmo… A periferia sabe que Deus do milagre, daquele que provê, é o Deus dos brancos. Por isso, quando se converte, quer esquecer o passado pobre, desgraçado e quer ser branco, ter carro, casa na praia, etc. Periferia não precisa de bíblia, precisa de educação, de Eduardo Galeano, filosofia africana, contos indígenas…
Esse ano a criação da Bancada Popular Evangélica (2020) foi um avanço na construção de contranarrativas ao fundamentalismo religioso que tem ocupado os espaços de poder. Como a bancada popular tem olhado para a questão racial, principalmente considerando que o rosto evangélico é de uma mulher negra moradora da periferia?
A Bancada Evangélica tentou ser diferente, olhou para esquerda, está na esquerda, mas os vícios continuam os mesmos. Se o homem branco não coordena, o homem não manda, não rola, fica no ar.… não se uniu, cada um para um lado, buscando a sua “sobrevivência eleitoral”.
Diálogo com mulher negra só na eleição, para distribuir panfleto, carregar bandeira e preencher cota
Boto fé quando uma bancada evangélica, sem medo, enfrente as questões como reforma agrária, movimentos dos sem teto, aborto, cracolândia, quando essas forem suas pautas. Lógico que temos avanços, mas é preciso fazer a diferença de fato, concretamente.
Diálogo com mulher negra só na eleição, para distribuir panfleto, carregar bandeira e preencher cota. Tivemos mulheres negras eleitas, mas se formos pensar no número de negros e negras no Brasil, foi pouco…
Temos visto o avanço da visibilidade dos evangélicos progressistas nas redes sociais, em diversos debates que buscam a não generalização dos evangélicos. Como o movimento negro tem se colocado nesse debate? Como avançar para além das redes sociais?
Avançar além das redes sociais é o meu sonho, ver todo esse povo que grita na internet caminhando comigo nas ruas, enfrentando polícia, delegado de polícia, visitando presídio, etc.
Movimento negro de fato precisa sair do lugar comum, trabalhar na base mesmo, na igreja e na rua, na porta da fábrica, no Brás, que está cheio de camelô africano, haitiano, mulheres negras nas ruas com suas crianças vendendo, se prostituindo.
Fazer roda no salão, com todo mundo do mesmo lugar, que pensa igual, cheirando gostoso, não vai muito longe. Qual a proposta libertadora, educadora estão trabalhando nas penitenciarias, nas casas de acolhida, com meninos e meninas na Fundação Casa?
É lá que o bicho pega, é ali que tem que começar o diálogo, antes do traficante, da cafetina. Tem que conversar com o traficante da comunidade e falar que quer fazer um trabalho com as crianças para elas irem para a escola, estudar, sonhar em ser médico, advogado.
Se o traficante tem filho, vai ser o primeiro a liberar, ele também quer ter filho doutor, filha médica, enfermeira, engenheira, quer que o filho tenha o que ele não teve.
Edição: Leandro Melito
Por:
Angelica Tostes é Teóloga, mestra em Ciências da Religião, coordenadora auxiliar de cursos do CESEEP, professora e pesquisadora do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
Delana Corazza é Cientista Social, Doutoranda em Geografia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) e pesquisadora do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.