“Hoje é o dia favorável para se receber a graça,
Hoje é o dia da salvação” (2 Cor 6, 2).
Queridos irmãos e irmãs,
Hoje, as antigas Igrejas cristãs (Católica, Ortodoxas, Anglicana, Metodista e Luterana) começam o tempo da Quaresma. A quarta-feira de cinzas é uma celebração que ficou mais na tradição católica e parece se contrapor ao Carnaval. Em uma paróquia que conheci, o padre fazia as cinzas da quarta-feira das fantasias do Carnaval que os fieis traziam para queimar. Pessoalmente, acho de mau gosto essa contraposição entre a brincadeira do Carnaval e a severidade da Quaresma, embora digam os históricos, que o Carnaval começou como três dias de festas e brincadeiras, prevenindo o tempo mais de jejum e penitências da Quaresma. Isso pode ter sido assim na Idade Media, mas não corresponde ao espírito mais profundo desse tempo.
Nos primeiros séculos do Cristianismo, quando surgiu a Quaresma, era o tempo em que as pessoas que se preparavam ao batismo (catecúmenos) se preparavam mais intensamente para o sacramento da vida nova que receberiam na noite da Páscoa, na santa Vigília que é a mais importante de todas as celebrações cristãs. E pouco a pouco, esse tempo da Quaresma, se tornou também o período do ano no qual, do mesmo modo que os catecúmenos esperam a Páscoa para serem batizados, os penitentes (pessoas que haviam rompido com a comunidade e desejavam voltar a ser da Igreja) se preparavam pedindo perdão e aprofundando a fé para serem reconciliados com a Igreja na quinta feira-santa e assim poderem já plenamente integrados na comunidade, celebrarem a Santa Páscoa. De todo modo, se vê que o sentido mais profundo da Quaresma é o que São Bento diz para os monges em sua regra: “esperar com alegria a Santa Páscoa”.
Como viver isso hoje em dia? De um lado, a festa da Páscoa não é apenas o rito que lembra a morte e ressurreição de Jesus. É um sacramento, isso é, um memorial que revive e nos faz atualizar em nossa vida e no mundo a energia da Páscoa de Jesus. Então, pessoalmente, considero a Quaresma e Páscoa como um tempo de renovação da consciência, revisão profunda de vida e como um tempo no qual me proponho a dar passos novos em um jeito novo de viver e de conviver. Isso não é fácil. Por isso, preciso sim intensificar não somente nesse tempo, mas a partir desse tempo, a leitura da palavra de Deus, a oração e a solidariedade efetiva e afetiva aos irmãos e irmãs, especialmente o meu compromisso prioritário e profundo com os pobres.
Houve uma época na qual, na Quaresma, eu fazia pequenos ou maiores gestos de renúncia (não comer doce na Quaresma, não ir ao cinema, etc). E quando acabava a Quaresma, tudo voltava ao normal. Não creio mais nesse tipo de ascese, embora compreendo o valor do autocontrole e do ser capaz de me dominar a mim mesmo naquilo que eu gosto. Mas, prefiro fazer esforço no que é essencial e que sinto que ainda preciso mudar: a capacidade de partilhar tudo o que sou e o que tenho com os outros, a capacidade de lidar bem com a fragilidade da idade que chegou e com o corpo envelhecido que a gente sente que vai caindo aos pedaços, mas que o espírito seja capaz de mantê-lo de pé e altivo até a hora em que for o caso de partir.
A Quaresma é principalmente o tempo de retomar a esperança – esperança de que eu sou sempre capaz de me converter e me tornar mais semelhante ao meu mestre Jesus e mais irmão de todas as pessoas – Que nessa Quaresma Deus me torne mais uma pessoa de comunhão – que minha espiritualidade e teologia partam do carinho e se façam sempre de ternura pelos meus irmãos humanos e por todos os seres vivos. Que essa conversão tome forma de solidariedade à natureza, no cuidado com os ecossistemas (Campanha da Fraternidade desse ano de 2017) e me faça retomar sempre a esperança da construção do reino de Deus, mesmo no Brasil do Temer e do mundo do Trump.
Aprofundarei nessa Quaresma uma contemplação de Deus como pequeno servidor da humanidade, um dalit indiano ou o que os bolivianos racistas de Santa Cruz de la Sierra costumam chamar “índio sujo da cordilheira”. Um impuro que as Igrejas das castas clericais sempre acabam rejeitando ou discriminando. E Ele ou Ela nos convida para sairmos juntos à noite e transformar nossas noites em dias. Aí sim, aceito voltar a Goiás para o Tríduo Pascal e celebrar com a comunidade que ainda se reúne ali no antigo mosteiro a vigília-mãe de todas as vigílias da Igreja. E aí sim “mesmo as trevas não são trevas para ti. A noite será clara como o dia” (Salmo 139), cântico que resume o Exsultet (anúncio feliz da nova Páscoa) que cantaremos na madrugada do domingo pascal.
Para vocês uma santa e renovadora celebração desse tempo da Quaresma e Páscoa na comunhão com os nossos biomas e toda a mãe Terra.
Um abraço do irmão Marcelo