Uma das características da pós-modernidade é a redução da cultura a mero entretenimento e a exacerbação dos sentidos em detrimento da razão e do espírito. Para estimular o consumismo, utilizam-se como isca recursos capazes de nos fazer sentir mais e pensar menos. Isso vale para a publicidade, certos programas televisivos e até rituais religiosos.
Dissemina-se uma cultura centrada no epidérmico, na qual há mais estética que ética, nádegas que cabeças, urros que melodias, ambições que princípios, devaneios que utopias.
Tudo é aqui e agora a ser devorado por olhos e ouvidos, o corpo entregue a um frenesi de sensações que faz do prazer simulacro da felicidade e do amor.
Seres relacionais e racionais, como acentuam os filósofos desde Sócrates, somos agora reduzidos a seres extróficos, revirados para fora, estranhos a nós mesmos, como lamentava Kierkegaard, pois a nossa autoestima passa a depender do que vem de fora – da gula e da antropofagia visual aos arremedos da fama, fortuna e poder.
Páscoa significa travessia, passagem. Talvez uma das mais difíceis seja a que nos faz percorrer o caminho entre a epiderme e a vida interior, não para dualizar polaridades, mas para resgatar a unidade ontológica. O budismo tibetano tem razão ao afirmar que, malgrado todo avanço científico e tecnológico, cada pessoa é ontologicamente a mesma desde que o símio tomou consciência de que o galho de árvore em suas mãos poderia servir-lhe de arma de ataque e defesa.
Aristóteles sintetizou-nos em esferas sensitiva, racional e espiritual, como unidade que exige equilíbrio. A exacerbação de uma significa a atrofia das outras. Só a predominância do espiritual é capaz de imprimir sensatez às “loucas da casa”, como disse Teresa de Ávila, evitando o sabor da náusea dos sentidos, descrito por Sartre, bem como o racionalismo que, ao contrário de Tomás de Aquino, julga equivocadamente que a razão é a suprema expressão da inteligência.
Fazer Páscoa em si mesmo é cultivar a interioridade. “Beber do próprio poço”, sugerem os místicos. Desnudar-se de ilusões egocêntricas, jejuar os sentidos, adequar a razão a seus limites, orar e meditar para poder contemplar.
Somos seres vocacionados à transcendência. Como dizia Hélio Pellegrino, cuja transvivenciação comemora agora 30 anos, uma samambaia desfruta de sua plenitude vegetal. Nós, não; escravos do desejo, temos buracos no corpo e na alma. É a “gula de Deus”, da qual falava Rimbaud.
Ao deixar de trilhar as veredas que conduzem ao Absoluto, corremos o risco de nos perder no acidentado terreno que cotidianiza o absurdo: iras e mágoas, inveja e competição, medo e, sobretudo, uma incomoda sensação de não saber exatamente o que fazer desse breve período de existência.
A Páscoa é precedida de morte que, emblematicamente, a tradição cristã qualifica de paixão, um ato de amor, de entrega, que faz refluir tudo aquilo que dispersa, aliena e ilude. Jesus no túmulo simboliza o silêncio, a volta ao mais íntimo de si mesmo, abraçar a solidão sem se sentir solitário.
Frei Betto, escritor, autor de “A obra do artista – uma visão holística do Universo” (José Olympio), entre outros livros.