O mundo inteiro distraiu-se um pouco de suas mazelas nos últimos dias para voltar os olhos para Londres. Ali, na porta do hospital st. Mary, apareceram o príncipe William da Inglaterra, acompanhado de sua esposa Kate, duquesa de Cambridge, para apresentar ao povo inglês o novo bebê real. Com eles, os outros dois filhos, George, de 5 anos, Charlotte, de 2. O caçula é um menino e ainda não teve seu nome divulgado. Bela família, feliz, saudável e aplaudida.
Enquanto isso, no hospital Alder Grey, em Liverpool, outra família sofre e clamava pelo direito de tentar mais um recurso para salvar a vida do filho. Alfie Evans era um bebê de 23 meses acometido de uma doença degenerativa rara, que o fez ter um retardo em seu desenvolvimento. O médico procurado à época disse que ele era preguiçoso, gostava de dormir e custaria mais do que os bebês normais a se desenvolver. No entanto, uma severa infecção levou à primeira internação do menino. Depois mais outra e mais outra. Finalmente, Alfie acabou permanecendo internado, pois dependia de aparelhos para ajudá-lo a respirar e se alimentar.
Os pais de Alfie, Tom e Kate, afirmavam que o filho estava lutando com todas as forças que armazenava em seu pequeno corpo combalido pela doença. E não queriam de forma alguma que os aparelhos fossem desligados. Pela internet circulavam vídeos e fotos do pequeno piscando e fazendo gestos, mostrando que estava vivo. O hospital e sua equipe de médicos mantiveram-se inamovíveis na convicção de que o pequeno Alfie devia ser desconectado dos aparelhos que lhe davam suporte e passar a receber apenas cuidados paliativos. O caso foi à justiça.
Tom e Kate não aceitavam esta decisão e já que não eram ouvidos nos tribunais de seu país, apelaram para o mundo. Nas redes sociais, criaram-se sites e grupos em favor do direito de Alfie de continuar vivendo. Finalmente, a Itália se dispôs a receber a família Evans. O menino viajaria em um avião equipado com todos os recursos e seria levado a um hospital para ali receber outros cuidados e tentar avançar em sua luta pela vida.
Nos últimos dias, após o último recurso jurídico perdido por Tom e Kate Evans, Alfie foi desconectado dos aparelhos. Porém, continuava respirando sozinho. Segundo os pais, não foi a única vez em que isso aconteceu. Em outros momentos em que quiseram desconectá-lo dos aparelhos que lhe dariam suporte para respirar e alimentar-se, Alfie também conseguiu respirar sozinho e o hospital foi obrigado a reconectá-lo. Mas nestas ocasiões ainda não havia a decisão jurídica final. Uma vez que esta chegou, Alfie foi desligado da vida.
A situação era dramática. Por um lado, Alfie continuava vivo sem o suporte de nenhum aparelho. Havia um avião pronto para decolar da Itália para ir buscá-lo e à sua família em Liverpool. Até a cidadania italiana lhe foi dada para reforçar mais a disposição do país em recebê-lo e contornar possíveis dificuldades migratórias. Ali usariam procedimentos até então não utilizados como traqueostomia, a fim de tentar chegar a um diagnóstico mais preciso sobre sua saúde e traçar um novo plano de tratamento.
A justiça inglesa não permite que isso seja feito e o hospital recusava-se a dar oxigênio para que o menino respirasse e soro para alimentá-lo. Após o desligamento dos aparelhos de suporte, se eventualmente o paciente continuasse com os sinais vitais, seria obrigatório fazê-lo. Mas o hospital argumentou que o caso de Alfie não tinha esperança. Havia que oferecer-lhe apenas cuidados paliativos, para que não sofresse.
Os pais não desistiam e faziam nele respiração boca a boca para ajudá-lo a respirar e viver. E continuavam lutando na justiça, acreditando que seu bebê merecia todas as chances para continuar vivo. Mostravam ao mundo os relatórios hospitalares de Alfie, onde era comprovado que não estava sentindo dor nem sofrendo. Reivindicavam seu direito de tomar a decisão que envolve a vida de um filho. Argumentavam que havia outros países que queriam recebê-lo e tentar tratá-lo.
No conflito entre o hospital e a família, apareceu claramente o polaridade entre moral e razão. A posição dos médicos e da justiça britânica era, sem sombra de dúvida, racional. A razão dizia que aquele menino não tinha futuro. Suas chances de sobrevida eram mínimas e não se devia prolongar inutilmente seu sofrimento e o de seus pais. Esta é a decisão racional a ser tomada.
Os pais de Alfie, porém, viam nele uma vida que não se apagara. Embora combalida, ali estava, latente, como “a mecha que ainda fumega” de que falava o profeta Isaías. Por que não lhe dar mais uma chance? Por que, se havia equipes médicas dispostas a atendê-lo e tratá-lo?
A mesma nação que se enternece e aclama o recém-nascido príncipe tem um sistema jurídico que condenava Alfie e o impedia de receber mais um recurso de acesso à vida. Por quê? Em que a vida de Alfie importava menos que a do bebê de William e Kate? O que aconteceria se fosse este último que estivesse doente? A razão e a ciência existem no Reino Unido e na Itália. Se há divergências na medicina de um e outro país, por que não dar a Alfie o benefício dos que viam positivamente seu caso e se dispunham a tratá -lo?
Em todo caso, Tom e Kate Evans geraram aquela vida. Não pela razão, mas pelo amor. Que a decisão que diz respeito à vida do filho fosse deixada a eles. Torci para que pudesse voar no avião italiano no encalço da esperança que os animava.
Alfie morreu na madrugada deste sábado no Hospital Alder Hey. Seus pais divulgaram nota em que afirmavam: “Nosso bebê cresceu asas às 2h30m da madrugada. Nós estamos com o coração partido. Obrigado a todos pelo apoio.”
Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão” (Edusc), entre outros livros