A Igreja do Chile vive tensos momentos. Depois de seguidas denúncias de abusos sexuais por parte de sacerdotes e o encobrimento das mesmas por membros da hierarquia católica, o Papa Francisco foi procurado pelas vítimas. Em um primeiro momento não aceitou as denúncias por considerá-las falsas. Uma vez convencido por seus emissários que investigaram os fatos in loco, constatou que havia sido mal informado, pediu perdão às vítimas e convocou todos os bispos do país a Roma.
A reunião entre os bispos e o Papa foi dura, dolorosa, mas franca e transparente. Ao final da mesma, a Igreja e o mundo se surpreenderam ao saber que todos os bispos se colocaram à disposição do pontífice para que atuasse com toda liberdade quanto ao futuro deles. Trata-se de algo inusitado em termos eclesiais. E por isso não se sabe o desfecho que terá.
Quem permanecerá? Quem sairá? Quem será confirmado na missão que desempenha agora? Quem deverá deixá-la? Sobre isso nada se sabe. Sabe-se, porém, que neste tema tão tenebroso da pedofilia na Igreja pela primeira vez as feridas são expostas sem complacência ou meias medidas. O processo poderá ser muito difícil, mas existe uma real oportunidade de sanar o futuro.
Desde o momento em que constatou claramente que as vítimas diziam a verdade com suas denúncias, Francisco atuou de forma transparente. Ao reunir-se por três dias com os bispos chilenos, entregou-lhes um documento de dez páginas. Nele, não poupava expressões e chamava as coisas pelo nome: negligência, omissão, erros graves, vergonha. Os bispos refletiram sobre o que lhes era dito e chegaram conjuntamente à posição de deixar o Papa decidir e agir com toda liberdade
Não é de hoje que o fantasma da pedofilia assombra a Igreja Católica. Todos recordamos o drama que Bento XVI teve que enfrentar logo no início de seu pontificado. O caso do Chile soma-se a essa lamentável lista de escândalos que fragiliza o tecido eclesial e a credibilidade da instituição. Por ser tão grave, não pode ser tratado com medidas paliativas. Há que reconhecer o erro, pedir perdão e procurar reconstruir integralmente o que foi destruído.
O gesto dos bispos é admirável em sua radicalidade. Agradecem às vítimas por haver, com suas denúncias, permitido que a verdade venha à luz. Elogiam sua perseverança e coragem ao expor publicamente suas feridas e persistir em tentar ser ouvidos em meio às incompreensões e ataques inclusive da comunidade eclesial. Pedem perdão à Igreja como um todo e particularmente à do seu país. Agradecem ao Papa sua escuta paternal, sua correção fraterna e o honesto diálogo que com eles manteve.
Admirável igualmente foi a atitude de Francisco. Se em um primeiro momento não aceitou as denúncias por considerá-las falsas, não deixou de mandar apurar e investigar os fatos. E uma vez constatada a pertinência do que diziam as vítimas, teve a coragem de pedir perdão e mudar sua decisão.
Por mais chocante que pareça todo o acontecido, na verdade, o decurso de todo o processo deixa perceber claramente a força do Espírito que conduz à verdade e é verdade em si mesmo. Já diz a Escritura que o outro nome do demônio é Pai da mentira. Tudo que é falso, camuflado, encoberto não vai na direção da justiça, da paz e do amor. Entra, pois, em rota de colisão com a Boa Nova que o Evangelho traz e não sintoniza com o projeto do Reino de Deus.
É preciso, pois, romper. E foi essa ruptura – dura e dolorosa – mas poderosamente sanadora que aconteceu. Aconteceu no confronto do qual foram personagens as vítimas dos abusos, os bispos chilenos e o Papa. Aconteceu na percepção de Francisco de onde estava a verdade que urgia que se corrigissem rumos e tomassem medidas enérgicas. Aconteceu na abertura sincera dos bispos que renunciaram a controlar seu destino e o puseram em mãos do Papa.
De fato, com tudo que tem de sombrio, trata-se de um evento luminoso. Finalmente está para sempre banida a secreta convicção de que o clericalismo que ainda habita a Igreja protege os abusadores, confiantes no silêncio das vítimas. É evidente que estas não mais estão dispostas a calar seu sofrimento e o dano que lhes foi feito. Isso permite esperar para as novas gerações um clero mais responsável e adulto. Igualmente um episcopado mais cuidadoso na formação de seus seminaristas e mais vigilante sobre o que se passa em suas comunidades.
Fica claro igualmente que quando se busca com sinceridade o caminho do bem, o medo é vencido e emerge a honesta disposição de reparar os erros cometidos. Mesmo que não seja fácil, que isso implique viver momentos de incerteza e de insegurança, confiando apenas na misericórdia divina.
O que sucede neste momento com a Igreja do Chile permite esperar tempos melhores com respeito às relações intra eclesiais. A pedofilia acontece em todos os setores da sociedade. Não é prerrogativa da Igreja Católica tê-la em suas fileiras. No entanto, talvez o modo como essa mesma Igreja, sob a direção do Papa Francisco, está administrando algo tão conflitivo possa ser um testemunho que ajude a sociedade como um todo ao deparar-se com o mesmo problema.
Se. como disse Jesus Cristo, só a verdade liberta, parece que há reais motivos para celebrar o processo libertador que hoje vive a Igreja do Chile.
Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, autora de Testemunho: profecia, política e sabedoria, Editora PUC-Rio e Reflexão, entre outras obras.