O Dia das Mães vem se tornando uma data sobretudo comercial. Produtos se propõem fazer mais felizes aquelas que um dia geraram filhos. Para além dos presentes, no entanto, a data relembra a experiência mais primordial da humanidade desde seus primórdios: a relação entre mãe e filho.
Sendo nas sociedades primitivas algo natural, parte do ciclo biológico da vida que se reproduz e se multiplica, a maternidade passou a ser pensada pela razão e a cultura. Para isso produziu discursos que atravessaram séculos e conheceram transformações segundo épocas e contextos.
Nas grandes religiões encontra-se a presença de deusas mães que marcam as crenças com o selo da fertilidade e da fecundação. Seu ritmo é o da mãe terra com suas estações, mortes e renascimentos. Já as religiões monoteístas são urânicas, marcadas por movimento da revelação de um Deus único e transcendente invocado com nomes masculinos como Senhor, Forte Guerreiro, Pai.
No discurso do Cristianismo, porém, há uma novidade introduzida pela maternidade: a pessoa da mãe de Jesus. O Cristianismo afirma que a pessoa divina do Verbo se encarna no ventre da jovem Maria de Nazaré. É a mãe que dá carne, humanidade, a esse que os cristãos proclamam humano e divino. E esse mistério da maternidade divina configurará toda a tradição cristã.
Paulo de Tarso, judeu filho de judeus, cidadão romano e primeiro teólogo, dirá na Carta aos Gálatas: “Na plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho nascido de mulher”. E por isso, porque inaugura uma plenitude transcendente dentro da temporalidade histórica, a relação da Mãe com o Filho é geradora de vida e sentido para a humanidade. Maria é mãe, gerando quem a gerou, sendo anterior ao filho em sua humanidade, mas posterior por sua divindade. Ultrapassa os limites da ginecologia e da biologia, sendo reconhecida e cultuada como virgem e mãe simultaneamente.
O imaginário religioso cristão cria assim uma nova matriz para uma rede de outras relações muito complexas: a de Deus com a humanidade, a do homem com a mulher, a do filho com a mãe entre outras muitas. E deixa patente o fato de que o discurso sobre a maternidade da Virgem Maria foi, sem dúvida, o mais forte que o Ocidente já conheceu.
Forçoso é reconhecer, apesar disso, a grande contribuição que a crítica feminista tem feito com respeito ao mito do amor materno. Chavões sobre a incondicionalidade do amor da mãe que se sacrifica até o fim pelo filho esquecendo-se de si própria, sintetizados no famoso “ser mãe é padecer no paraíso”, são hoje rejeitados. Da mesma forma o antigo preconceito de a maternidade ser vista como único e irrevogável destino da vida de uma mulher não se sustenta atualmente.
As mulheres se emanciparam, entraram no espaço público e no mercado de trabalho. As jovens mães muitas vezes dividem com os esposos e companheiros o cuidado dos filhos e combinam os deveres da maternidade com as obrigações profissionais. Algumas planejam sua maternidade, escolhem o tempo e o momento em que desejam procriar. Outras já não desfrutam desse privilégio. Esmagadas pela pobreza ou pela violência ou por ambas, são engravidadas ainda adolescentes por um parente próximo que pode até ser o próprio pai, dentro de casa.
No entanto, é fato que nada ainda conseguiu substituir a experiência única de gerar e hospedar em seu próprio corpo outra vida. E por isso a primeira experiência de alteridade e relação que qualquer ser humano tem ou terá será aquela que se inicia no ventre materno. Por mais traumática que seja, por mais negativa. É o milagre de habitar em outro e ser por ele habitada que ali acontece. Do santo ao criminoso, do gênio ao iletrado, do rico ao pobre, todos, sem exceção, são – somos – filhos e filhas de mulher. Temos mãe.
Muitas, além de termos mãe, somos mães. Um dia sentimos pulsar outro coração junto ao nosso. Vimos nosso corpo se transformar ao ritmo do outro que em nós crescia e se desenvolvia. E ao termo desse processo de intimidade e comunhão com a outra vida que em nós acontecia, vivemos a plenitude de dar à luz e receber em nossos braços aquele pequeno ser que nos fez e faz sentir que o mundo começa e recomeça.
Para todas, neste dia, desejo a consciência da graça de viver essa plenitude. Não só para Maria de Nazaré chegou a plenitude dos tempos com o nascimento de seu Filho a quem deu o nome de Jesus, que quer dizer Deus salva. Em cada mãe que viveu a experiência do alumbramento, essa plenitude chegou.
Por isso é urgente recuperar o discurso da maternidade, algo obscurecido por discursos outros que predominam na modernidade e na secularização. Se a maternidade não voltar a encontrar sua cidadania plena na vida humana hoje, é de se temer que caminhemos para uma perigosa decadência sem esperança de volta.
Que se presenteiem as mães. Não esquecendo, porém, que para elas o maior presente já foi dado. Presente que é graça recebida chamada a converter-se em doação permanente. Ser humana e mortal e ao mesmo tempo morada da vida. Ser portadora do desejo do amor que é fértil e que se reproduz. Ser frágil e perecível mas carregar em si o segredo da vida que não morre porque continua a acontecer para sempre e continuamente.
Feliz Dia das mães para todas.
Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, autora de “Simone Weil – A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco)