O Papa Francisco insiste na misericórdia. Foi na abertura da Porta Santa, depois no Advento e no Natal. E, agora, na abertura da Quaresma continua batendo na mesma tecla e toma como lema as palavras de Jesus no Evangelho de Mateus 9,13: “Misericórdia quero e não sacrifício.” Não aparece, porém, no lema – mas sim no tema e na intenção do Pontífice, certamente – o mandato que antecede esta declaração: “Ide e aprendei o que isto significa”.
A alguns pode deixar perplexos a misericórdia ser o maior desejo de Deus e não o sacrifício. Pois não nos ensinaram sempre que é importante fazer sacrifícios, porque esses agradam a Deus? Os da minha geração certamente perderam a conta de quantas tabelinhas de ramalhetes espirituais preencheram, em folhinhas parecidas com as do jogo de batalha naval, dando conta de quantos sacrifícios haviam sido feitos naquele mês. E esses sacrifícios consistiam em privar-se de balas, ou rezar ajoelhada no chão frio durante bastante tempo, ou passar um mês sem comer chocolates. Tudo isso para agradar a Deus. E agora vem nos dizer que ele não quer sacrifícios e sim misericórdia? Como assim?
Porque sabe disso, Jesus insiste. Sabe que não é espontânea em nós a prática da misericórdia. Não é natural nossa inclinação para olhar o outro sem julgá-lo, sem segregá-lo, sem classificá-lo com rótulos ou compartimentos que sigam nossos padrões. Pelo contrário, é costume nosso olhá-lo de cima. Pobre dele ou dela se não tem fé como nós, nem faz sacrifícios diários e miúdos que acumulamos, acreditando assim economizar para uma eternidade mais confortável ou mais brilhante.
Ganhar a salvação aplicando na poupança do sacrifício parece que não agrada a Deus. Pelo menos é isso que diz seu Filho Jesus, o único que O conhece verdadeiramente. E para reforçar ainda mais sua afirmação, Jesus o diz após ver seu poder questionado por ocasião da cura de um paralítico, depois de chamar para segui-lo um publicano mal visto entre o povo por ser desonesto e ladrão, após ser criticado por comer com publicanos e pecadores.
Impressionante contexto, em que muitos de nós poderíamos identificar-nos facilmente com os críticos de Jesus. Esclarecedora situação, em que estaríamos certamente entre os que julgam sem cessar o próximo e por isso têm muito que aprender em termos das preferências de Deus. Pois resulta que ele não se compraz com nossos sacrifícios, oferendas e rituais, com os quais pensamos comprar sua benevolência. Mas – pasmem! – deseja a misericórdia incessante e permanente, uma atitude de vida que nos faca aproximar-nos do outro com as entranhas carregadas de carinho, ternura e abertura total. Mesmo que o outro não seja puro, nem justo, nem imaculado, segundo os cânones oficiais.
Este é o aprendizado que somos convidados a encetar nesses quarenta dias de conversão que o tempo da Quaresma nos proporciona. Não podemos entrar nesse tempo como mestres da pureza e doutores da ascese, exibindo em praça pública quão grande é o nosso espírito de penitência e sacrifício. Mas, sim, estamos convidados e carinhosamente chamados pelo Senhor, em convite reforçado pelas palavras de Francisco, a sermos discípulos da misericórdia, procurando humildemente aprender a fazer dela nosso estilo de vida.
Em tudo a misericórdia deve perpassar-nos de alto a baixo. Deve inspirar nossas palavras, fazendo-nos “sair dos círculos viciosos das condenações e vinganças, que continuam a encadear indivíduos e nações”, tal como disse o Papa no Dia Mundial das Comunicações. A palavra do cristão, reiterou ele, “propõe-se fazer crescer a comunhão”.Portanto, logicamente não pode ser de juízo e condenação sobre o outro.
A misericórdia deve guiar nossos gestos. Estender a mão ao diferente, ouvir o angustiado, erguer o caído sem condená-lo, procurar colocar-se no lugar do outro para entender sua perspectiva e aprender com ela. O próprio Papa começa dando o exemplo. Vai encontrar-se em Cuba com o patriarca Kiril, da Igreja Ortodoxa russa, fazendo um gesto concreto que põe fim a uma separação entre cristãos que já dura mais de mil anos.
Tudo isso é um delicado aprendizado. Para tanto, necessitamos da disciplina quaresmal. E o tempo propício para aprender do próprio Deus, que quer misericórdia e não sacrifício, que é misericórdia em Si mesmo. Ao longo de toda a Escritura nós podemos ver e ouvir esse Deus desviando o rosto das gordas oferendas rituais a Ele feitas com o coração carregado de dureza e intransigência, com a vida pontilhada de cupidez e avareza. Não é possível agradá-lo assim. Pois o que Ele quer é misericórdia.
Deus é Aquele que recebe o filho que se foi com festa nunca antes vista naquela casa; que deixa para trás as noventa e nove ovelhas fieis e sadias para buscar a que se perdeu nos espinhos do caminho por não seguir a voz do pastor. Em Jesus, encarnação de sua misericórdia, Deus acolhe a adúltera sem uma palavra de condenação; aceita com gratidão a homenagem do amor da pecadora pública que entra no banquete do fariseu e banha com lágrimas e perfume seus pés cansados da poeira da estrada; cura doentes, toca leprosos, abraça crianças, liberta os pobres, faz os cegos verem, os surdos ouvirem e os coxos andarem. Olhando para Ele aprenderemos que a misericórdia é maior que o sacrifício.
Aprender a viver na misericórdia é o convite a nós feito nesta Quaresma. Que as Cinzas traçadas sobre nossa fronte na Quarta-Feira que inaugura o tempo da conversão nos ajudem a crer neste Evangelho, nesta Boa Notícia: Deus quer misericórdia e não sacrifício.
Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “O mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de descrença”, Editora Rocco.