A sociedade contemporânea é marcada pela diversidade cultural e por seu caráter laical. Isso é bom e necessário para uma boa convivência de todos. De fato, não há sentido em uma religião querer dar normas morais ou pretender dominar a sociedade. No entanto, muitas vezes, o caráter laical da sociedade tem como expressão a tendência de restringir a religião ao âmbito privado da consciência de cada um. Isso vai contra a natureza de todas as religiões antigas que vêm de sociedades gregárias e se expressam sempre em formas comunitárias. Uma sociedade pluralista pode ser laica sem ser anti-religiosa e deve se abrir a todas as dimensões culturais dos diversos grupos, inclusive suas expressões religiosas. O importante é que todos os grupos religiosos se respeitem uns aos outros e se insiram na sociedade como colaboradores das melhores causas da humanidade.
No caso das Igrejas cristãs, a proposta do evangelho é que os discípulos e discípulas de Jesus sejam testemunhas de que Deus tem para o mundo um projeto de paz, justiça e comunhão com o universo. Para isso, devem se inserir na sociedade e participar como cidadãos da luta pela vida e atuar junto com todos/as em prol da justiça, paz e cuidado com a natureza.
Desde os seus inícios, a cultura judaico-cristã é marcada pela memória do Êxodo. Nela a intuição da presença divina vem como Palavra que chama quem é escravo a se libertar. Deus não é mais visto como quem nos eleva da terra ao céu e sim como energia de libertação que nos chama a transformar o mundo. Não legitima o poder e sim subverte e transforma as sociedades. Dentro dessa tradição profética, surge Jesus de Nazaré como testemunha do projeto divino de um mundo transformado. Segundo os evangelhos, ele chama isso de “reino de Deus” ou reinado divino.
Conforme os evangelhos, para mostrar esse programa divino, pouco a pouco, emergindo no mundo, Jesus propõe tirar do tesouro da fé coisas novas e velhas (Mt 13). E o mais revolucionário: propôs nova forma de crer e de falar de Deus, como Pai e Mãe de ternura, Amor, presente em nós e solidário aos/as oprimidos/as e excluídos/as do mundo. Afirmou ter sido possuído pelo Espírito de Deus (O Espírito veio sobre mim e me enviou) para curar os doentes, libertar os prisioneiros e anunciar aos pobres e oprimidos a boa notícia da libertação (Cf. Lc 4, 16- 21). Só que a libertação não seria só para um povo (os judeus) nem para uma religião (a sinagoga), mas para todos os humanos, especialmente os “de fora” (Lc 4, 25- 30). Os religiosos da época de Jesus e de todos os tempos têm dificuldade de aceitar esse amor que não tem fronteiras. Para vivenciar essa novidade, Jesus reuniu um grupo de amigos e amigas que, depois do seu desaparecimento, se constituíram como movimento dentro do Judaísmo para abrir as comunidades do Espírito ao mundo inteiro, independente de raça e religião.
Inspiradas em Jesus, ainda no século I da nossa era, nasceram as Igrejas. Igreja é um termo grego que significa assembleia. Nas periferias de cidades do mundo grego, as comunidades de discípulos e discípulas de Jesus tomam o seu nome (Ekkesia: Igreja) das assembleias de cidadãos das cidades gregas e se constituem como novas e revolucionárias assembleias de pobres e de não cidadãos do império (paroiké era o termo pelo qual eram chamados). Ora, segundo a Lei Júlia (44 A.C), no Império Romano, todas as religiões eram permitidas, mas não as associações de pobres e trabalhadores. Mesmo assim, as Igrejas se constituíram, resistiram a incompreensões e mesmo algumas perseguições por parte de autoridades do império e se firmaram no mundo antigo. No início, cada comunidade ou Igreja tinha seu estilo cultural, sua organização e sua forma de expressar a fé. A maioria das comunidades eram constituídas por pessoas pobres que na Igreja tinham reconhecida a sua dignidade e ali ensaiava um jeito novo de viver a partir da igualdade e da comunhão de bens. Essa abertura à realidade fez com que as comunidades cristãs, pouco a pouco, até sem se darem conta, foram absorvendo as culturas dos locais onde se inseriam e foram assumindo alguns elementos das antigas religiões do Império, como o sacerdócio compreendido como classe de homens sagrados e o culto como expressão de sacrifício oferecido a Deus.
Na Igreja Católica, há sete anos, temos um bispo de Roma, patriarca das Igrejas de tradição latina, que, diferentemente dos papas anteriores, insiste no diálogo humilde e despretensioso com a humanidade. Dá prioridade às pessoas sem terra, sem teto e sem trabalho. Propõe uma Igreja em saída, isso é, que bispos, padres e fieis se desloquem dos centros de poder que criam revoluções digitais que excluem a maior parte da humanidade para o mundo dos pobres e excluídos. Em sintonia com o papa, as pastorais sociais católicas e evangélicas cultivam uma espiritualidade sócio- libertadora. Assim, o caminho da intimidade com o Espírito se dá na caminhada social e política por um novo mundo possível. É nas lutas sociais e na inserção em meio aos pobres que as comunidades eclesiais de base e militantes de pastorais sociais experimentam a presença do Amor Divino conduzindo e transformando suas vidas pessoais, à medida que transforma as estruturas do mundo. Uma Igreja cristã deveria ser ensaio de uma sociedade nova alternativa, baseada na justiça, na paz e na comunhão com a Terra e com a natureza.
Marcelo Barros, monge beneditino, teólogo e biblista, assessor das comunidades eclesiais de base e de movimentos sociais. Tem 55 livros publicados, dos quais o mais recente é “Conversa com o evangelho de Marcos”. Belo Horizonte, Ed. Senso, 2018.