Artigo originalmente publicado no jornal O Globo.
O episódio se passa em uma cidade da Inglaterra. O juiz alegou necessidade de férias e indicou para substituí-lo um cidadão acima de qualquer suspeita chamado Ângelo (=anjo). Contudo, em vez de viajar como prometera, o juiz se disfarçou de monge e se escondeu em uma paróquia da cidade. Ali recebeu penitentes que, ao se confessarem, falaram mal dele a seus ouvidos.
Nesse meio tempo, Ângelo lançou mão de leis que haviam caído em desuso, como a pena de morte. E decidiu aplicá-la a um homem que engravidara a noiva antes do casamento. A irmã do condenado suplicou misericórdia. O juiz, então, propôs a ela uma barganha: indultar o condenado em troca da virgindade dela, o que a moça não aceitou.
Acometido por uma crise de consciência, Ângelo desabafou: “Em um país onde os juízes roubam, os ladrões têm inquestionavelmente o direito de roubar”.
O episódio está descrito por Shakespeare na peça “Medida por medida”, de 1623. E nos remete a uma declaração da juíza Eliana Calmon, primeira mulher a integrar o Superior Tribunal de Justiça, em setembro de 2011, em conferência na Associação Paulista de Jornais. Afirmou que o Poder Judiciário estava “com gravíssimos problemas de infiltração de bandidos que estão escondidos atrás da toga.”
A recente divulgação pelo site Intercept Brasil de conversas entre o então juiz Sérgio Moro e a força-tarefa da Lava Jato, capitaneada pelo procurador Deltan Dallagnol, escancararam o confessionário da equipe encarregada de combater a corrupção no Brasil com lisura e imparcialidade. E o que se constata é estarrecedor: parcialidade, partidarismo, perseguição aos inimigos e proteção aos amigos. Uma escandalosa barganha que, agora, culminou na decisão monocrática do ministro Dias Toffoli de proteger Flávio Bolsonaro, filho do presidente da República, e seu parceiro Fabrício Queiroz, o que desencadeou uma reação em cascata de anulação de processos em andamento.
O mote de campanha de Jair Bolsonaro foi o versículo 32 do capítulo 8 do Evangelho de João: “A verdade vos libertará”. Até agora nenhum dos desmascarados pelo site Intercept utilizou, em sua defesa, o substantivo “mentira”. Alegam que a ação é criminosa, que as falas estão fora de contexto, que tudo é obra de hackers. É no mínimo curioso que não se investigue o conteúdo das mensagens. Não tem como negar a verdade do que revela o furo jornalístico de Glenn Greenwald, premiado nos EUA por revelar ações clandestinas e ilegais do governo estadunidense. Aqui, ele é ameaçado de prisão pelo governo brasileiro.
Pena nossas autoridades, que se exaltam como exemplos de cristãs, fazerem pescaria de versículos ao ler a Bíblia e ignorarem palavras de Jesus como estas em Lucas 12, 1-3: “Tomem cuidado com o fermento dos fariseus, que é a hipocrisia. Não há nada de escondido que não venha a ser revelado, e nada de oculto que não venha a ser conhecido. Pelo contrário, tudo que vocês tiverem feito na escuridão, será proclamado à luz do dia; e o que tiverem dito em segredo será proclamado sobre os telhados.”
Sou filho de juiz. E meu pai repetia em casa que um magistrado só preserva a imparcialidade quando evita duas tentações: as atitudes discricionárias, que dão a ilusão de estar acima das leis; e a vaidade de êxito público, porque os aplausos induzem Têmis, a deusa da Justiça, a arrancar a venda dos olhos para desfrutar melhor das ovações.
Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Anfiteatro/Rocco), entre outros livros.