O papa Francisco abriu uma nova janela na doutrina católica ao ser questionado, na viagem de retorno a Roma após visita ao México, sobre o direito de a mulher tomar contraceptivos, e mesmo abortar, devido ao surto de zika vírus.
Quanto ao aborto, Francisco foi enfático: a Igreja Católica o considera crime e está descartado. Embora ele saiba que não há consenso entre os teólogos quanto ao momento em que realmente se pode afirmar que há vida humana no feto.
Porém, quanto aos anticoncepcionais o papa lembrou da exceção aberta pelo papa Paulo VI quando freiras do Congo foram ameaçadas de estupro em situação de guerra. Adotou-se o princípio do mal menor: evitar a gravidez de uma religiosa antes que a sua vocação fosse prejudicada pelo nascimento indesejado de uma criança.
Francisco é um democrata, embora dotado de poder absoluto. Prefere não usá-lo. Predisposto ao debate, exime-se de condenações moralistas e convoca sínodos para que outras vozes se manifestem sobre questões polêmicas no âmbito católico. Foi o caso da homossexualidade ao afirmar, durante voo de retorno do Rio, após a Jornada Mundial da Juventude, que não se sente no direito de julgar os homossexuais e, muito menos, condená-los.
A Igreja Católica é a mais longeva instituição religiosa do planeta. O judaísmo é uma religião mais antiga, porém sem a institucionalização centralizada que caracteriza a comunidade fundada pelos apóstolos Pedro e Paulo. Por isso, sobre o trono papal se acumulam séculos de evolução doutrinária. Ou involução, como o celibato obrigatório para todos os sacerdotes, o que não ocorria nos primeiros séculos, e o dogma da infalibilidade papal, proclamado no século XIX pelo papa Pio IX, que tinha horror à modernidade, a ponto de condenar a luz elétrica (antinatural, pois muitos trocariam o dia pela noite…) e a democracia (favorecedora do livre pensamento…).
Muitas vezes, no debate teológico, o essencial é deixado de lado. E o essencial são os valores do Evangelho: amor, misericórdia, fome de justiça, desprendimento, disposição de servir e partilhar os bens. Inúmeras pessoas vivem intensamente tais valores sem nenhuma motivação religiosa. E sem que tenham consciência, são elas que melhor fazem a vontade de Deus. Serão aqueles que, conforme a parábola do Juízo Final (Mateus 25, 31-46), serão acolhidos como “benditos do meu Pai”
Um dos grandes avanços introduzidos pelo papa Francisco é o de considerar a natureza fonte de revelação divina, conforme enfatiza em sua encíclica socioambientalLouvado Seja – o cuidado de nossa casa comum. Até então eram considerados fontes de revelação divina apenas a Bíblia, a tradição e o ensinamento do magistério eclesiástico. Francisco escancarou as janelas para que possamos encarar a natureza como verdadeiro sacramento (= sinal) da presença amorosa de Deus.
Sempre que me entretenho com comunidades cristãs populares elas me perguntam sobre os três enigmas além desta vida: céu, inferno e purgatório. O limbo, que na catequese aprendi como lugar aonde iam as almas das crianças falecidas sem batismo, foi definitivamente fechado pelo papa João Paulo II. Havia sido criado na Idade Média, como o purgatório, para responder qual o destino dos bebês mortos sem o primeiro sacramento. Hoje se admite que todos nascemos no amor de Deus, e o batismo não é uma borracha para apagar um pecado original cometido por Adão e Eva, é um sacramento do futuro, para nos fortalecer na graça de Deus frente ao tempo de vida que nos espera.
O purgatório foi a solução “mineira” encontrada pelos teólogos medievais para se escapar do maniqueísmo bemversus mal. Ou seja, ao transvivenciarmos, vamos para o céu, como santos, ou para o inferno, ainda que a nossa cota de pecado seja infinitamente inferior a de um Herodes infanticida, um Torquemada inquisidor ou um Hitler nazista. Nada como um estágio intermediário, no qual somos purificados – daí o termo purgatório – até merecermos ingressar na morada celestial.
Tudo isso são metáforas na tentativa de dizer o indizível. Ninguém retornou do mundo dos mortos, exceto uma pessoa, segundo a fé cristã – Jesus. Ele ressuscitou e nos assegurou que também haveremos de ressuscitar, ou seja, seremos acolhidos na plenitude do amor de Deus.
O que é isso? Não sei exatamente. Sei que todos nós, sem exceção, somos movidos pelo anseio de amar e ser amados. Mesmo quando ostentamos fama, riqueza, beleza e poder. São formas de mendigar, altissonantemente, um pouco de amor. E o que Jesus nos assegurou é que, do outro lado desta vida, desfrutaremos disso em eterna intensidade. Mais não se sabe. Até mesmo porque as coisas do amor não cabem em palavras.
Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Leonardo Boff e Mário Sérgio Cortella, de “Felicidade foi-se embora?” (Vozes), entre outros livros.