No dia 7 de janeiro, a partir das 19h30, iniciou-se o segundo dia de palestras do 35º Curso de Verão (2022). Os encontros estão sendo transmitidos de forma virtual pelas redes sociais do Curso. O assessor convidado foi o professor e filósofo Manfredo de Oliveira, que apresentou o tema “Projetos de Sociedade: fundamentos filosóficos e práticas políticas”.
Já nas suas considerações iniciais Manfredo destacou a urgente necessidade de se compreender os desafios sistêmicos do capitalismo global, principalmente diante da constatação de que estamos numa crise civilizatória, onde o mundo está prestes a vivenciar uma catástrofe. O assessor assinala que entender como o mundo está articulado e organizado no hoje da história será a garantia de que poderemos pensar alternativas de projetos para uma sociedade diferente.
Capital Improdutivo: “ganhar dinheiro sem fazer nada”
Utilizando-se das reflexões do economista Ladislau Dowbor, Manfredo explica que o sistema financeiro internacional continua funcionando a pleno vapor e, com a globalização da economia, garante ainda mais a sua operação em escala mundial. No entanto, este sistema se afastou do seu objetivo inicial que era financiar o investimento e o crescimento econômico. “Hoje, faz o contrário, está drenando a economia, especulando para ganhar dinheiro sem produzir nada”, afirma Manfredo ao explicar que o capital financeiro, chamado de Capital Improdutivo, se apropria do excedente social fazendo com que o sistema financeiro se torne uma máquina que gera deformações generalizadas dos processos econômicos, sociais e ambientais.
O assessor explica que, por causa deste sistema, milhares de pessoas no mundo passam fome. Diz ainda que “estes gigantes que dominam o sistema financeiro, os grandes bancos, acabam assumindo também um poder político”. Esta realidade está muito presente em nosso país, “eles se apropriam dos governos que se tornam reféns deles através do endividamento público e os governos, por sua vez, ficam incapazes de regular o sistema financeiro em favor dos interesses da sociedade”.
Direito de propriedade: “Os pobres são indivíduos incompetentes”
Outro momento esclarecedor desta assessoria foi quando Manfredo fez uma breve análise do processo histórico entre o Liberalismo Econômico e o Neoliberalismo.
O Liberalismo Econômico é uma teoria que se torna conhecida a partir da Escola de Chicago – lugar onde o Ministro Paulo Guedes estudou – e tem seus fundamentos filosóficos na Escola Austríaca. O conceito básico é que o direito de propriedade é o único direito universal fundamental e absoluto. Explica o assessor: “o indivíduo torna-se proprietário exclusivo de sua pessoa e suas faculdades, garantindo assim, o direito absoluto de não agressão a propriedade e de protegê-la, inclusive matando se for necessário”.
A crítica que Manfredo apresenta sobre esta tese da auto-propriedade está no fato de que ocorre uma transferência das propriedades éticas da pessoa para a propriedade das coisas, ou seja, a partir deste conceito a pessoa coloca as propriedades das coisas sobre a proteção do direito, como algo inalienável da liberdade.
Essa compreensão edificada pelos liberais também serve para justificar suas leis e atuação na economia. Para eles, não haverá possibilidade de julgar as leis do mercado. Elas simplesmente se impõem a nós como algo incontrolável e superior. Por serem semelhantes às leis naturais, não faz sentido perguntar se são justas ou não. As questões são sempre voltadas para a eficiência técnica. “Para eles a desigualdade, exclusão social e pobreza não são problemas éticos, mas uma incompetência técnica. Os pobres são indivíduos incompetentes que escolheram objetivos errados e estratégias não adequadas”, explica o assessor.
Desde os anos 1940, que este modo de pensar se transformou em projeto de sociedade e foi levado à extrema consequência no Brasil, por isso que, para eles, “quando o Estado nos obriga a pagar impostos para articular projetos sociais, ele se torna um grande usurpador da propriedade e viola a liberdade das pessoas”, enfatiza o assessor, quando diz que estas ideias se contrapõem ao Estado Bem Estar Social, conceito que foi articulado nos anos 1930.
Foi com a preocupação de sair da crise do capitalismo dos anos 1920, que se buscou uma política de pleno emprego e redistribuição da riqueza. Esta recuperação do capitalismo só seria possível com a interação do Estado nos mecanismos do mercado. Manfredo explica que Estado Social de Direitos significa “incluir um sistema de direitos fundamentais, não só as liberdades individuais, os direitos civis e positivos, mas também, os direitos econômicos, sociais e culturais”.
Com o Estado Bem Estar Social houve um aumento enorme da capacidade de consumo das classes menos favorecidas, mas, a partir de 1970, reaparecem estas teorias liberais com o nome de neoliberalismo, afirmando que a crise existe por causa da atuação do mercado. Segundo esta teoria, numa sociedade moderna, com pessoas investindo e trabalhando, é impossível obter um conhecimento completo do sistema econômico. Ocorre o desmonte radical das políticas sociais e agora só o mercado pode resolver os problemas. “Eixo básico desta compreensão: subordinação da qualidade de vida dos seres humanos à acumulação do capital. Os resultados deste processo ameaçam a vida humana e toda a vida no planeta e pode encaminhar a humanidade a um colapso ecológico-social”, enfatiza.
O Novo que está surgindo: “disseminação do conhecimento e educação de qualidade”
Para explicar a tese de desigualdade da riqueza no séc. XXI, Manfredo utilizou a bibliografia do professor da Escola de Economia de Paris, Thomas Piketty, que apresenta como principal dimensão do conflito distributivo que marca nossa sociedade a questão da repartição da produção entre dois fatores fundamentais: a remuneração do trabalho e do capital.
Manfredo afirma que ainda hoje “temos muitos conflitos e extrema concentração de propriedade do capital”. Porém, é importante esclarecer que o capitalismo contemporâneo se articulou de uma forma diferente do que vinha antes. A própria natureza do capital transformou-se radicalmente através do tempo. Exemplo: de um capital fundiário, baseado na propriedade da terra para um capital imobiliário, industrial e de capital financeiro.
“Faz-se necessário compreender a evolução da razão do capital-renda e não apenas a divisão capital-trabalho. O papel duplo de todas as formas de capital é que elas são ao mesmo tempo: fator de produção e reserva de valor”, explica o assessor.
É a partir de 1980 que ocorre um enorme aumento da desigualdade. Que de certa forma gera uma desconfiança frente a qualquer argumento baseado no determinismo econômico, como é o caso do neoliberalismo. Por isso, o assessor enfatiza que o novo que está surgindo deve nascer da compreensão de que o problema da distribuição da riqueza e da renda é fundamentalmente um problema político a ser resolvido dentro de um processo de discussão na sociedade.
Manfredo explica que a dinâmica da distribuição de riqueza é uma dinâmica poderosa, ou seja, só se é capaz de barrar a desigualdade se formos capazes de implementar processos de ação a longo prazo, através da disseminação do conhecimento e da educação de qualidade, elemento fundamental. Isso acontece através de um sistema fiscal progressivo (paga mais quem ganha mais) ao contrário do sistema tributário da qual os pobres pagam mais do que os ricos.
“A hipótese de que o progresso da racionalidade tecnológica conduziria automaticamente ao triunfo do capital humano sobre o capital financeiro e a hipótese do aumento das expectativas de vida faria com que a luta de classe cedesse lugar a luta de gerações, isso são ilusões”, alerta o assessor ao enfatizar que o Estado, hoje, é um instrumento fundamental para o aumento de patrimônio dos mais afortunados. Segundo ele, “todas as políticas são organizadas para dar mais riqueza a quem já possui riqueza, contrapondo-se radicalmente aos princípios de justiça social que estão nas bases das sociedades modelos”.
Capitalismo informacional ou digital: “o vetor fundamental de produção é o conhecimento”.
Manfredo de Oliveira encerra sua assessoria retomando a bibliografia do economista Ladislau Dowbor para apresentar os grandes desafios que marcam o mundo contemporâneo, que constitui uma clara crise civilizatória composta de 3 eixos críticos: a) Catástrofe ambiental: estamos destruindo o planeta em ritmos absurdos; b) Drama das desigualdades: bilhões de excluídos dos projetos sociais e avanços tecnológicos; e c) Caos financeiro.
Por fim, “precisamos entender que passamos por um processo de transição, uma mudança profunda do capitalismo que nos faz rever um novo modo de produção. Estamos vivendo a evolução de um capitalismo informacional ou digital, em que o vetor fundamental de produção é o conhecimento”, alerta o assessor.
Esta transformação ampla e profunda será capaz de gestar um outro tipo de sociedade. Diferente da sociedade agrária, onde o fator de produção era a terra; da sociedade industrial, onde o fator de produção era a máquina; a grande transformação agora é que o ser humano programa as máquinas, ele produz conhecimento, tecnologias, algo imaterial. Agora o fator de produção é o conhecimento incorporado às maquinas. Desloca-se assim o conceito de propriedade privada dos meios de produção e material. Agora se dá através da restrição ao acesso.
Quer saber mais sobre o tema desta assessoria? Você pode adquirir o livro “Reconstruir a vida e a sociedade com saúde para todos – 35º Curso de verão”, organizado por Pe. José Oscar Beozzo e Cecília Bernadete Franco, nas lojas da Paulus ou pelo e-mail: ceseep@ceseep.org.br.
José Carlos Correia da Paz
Equipe de Comunicação