No mundo atual, sem dúvida, na base da crise econômica, sócio-política e ecológica da humanidade há um problema cultural. Quando há um terremoto, os técnicos procuram onde se deu o epicentro, isso é, o ponto nodal de onde partiu a falha da camada geológica. O epicentro da crise que a humanidade vive pode estar em uma violência cultural que nos fez romper com a dimensão comunitária que está inserida no DNA de cada ser humano e aceitar o individualismo, a cultura de competição e de absolutização do lucro que o papa Francisco chama de “cultura da indiferença” com o sofrimento dos pobres, tratados como descartáveis.
Por isso, cada vez mais aumenta o número de pessoas que acreditam: um elemento fundamental na luta básica contra esse sistema dominante é organizar a humanidade contra a barbárie. Isso é feito quando os pobres se organizam em movimentos sociais e quando buscamos fortalecer uma democracia participativa e direta. No entanto, para quem crê, o desafio cotidiano é acompanhar essa luta social por uma necessidade de permanente conversão pessoal. Ora, isso só é possível em comunidade.
Cenáculo é o nome com o qual a tradição cristã chama “a sala alta”, na qual, segundo os evangelhos, Jesus fez sua última ceia com os discípulos e discípulas, antes de ser preso. Segundo o evangelho de Lucas, depois que Jesus desapareceu da vista deles, os discípulos e discípulas, reunidos com Maria, mãe de Jesus, ficaram no cenáculo em um primeiro retiro do grupo, à espera do Espírito. Ali, naquela sala, aconteceu o primeiro Pentecostes cristão, com a descida do Espírito de Deus sobre a comunidade reunida.
De fato, na história da Igreja, o cenáculo ficou sendo o símbolo de uma comunidade que, mesmo em meio às tensões, resiste unida. É parábola da utopia do reino de Deus. Em meio à resistência, anuncia a esperança da libertação. Por isso, para nós mesmos e para os irmãos e irmãs, precisamos formar sempre novos cenáculos que possam ser espaços de comunhão recíproca, de resistência à sociedade dominante e de fortalecimento dos irmãos e irmãs no caminho da utopia. Precisamos de células de resistência, de círculos de cultura da comunhão e da solidariedade.
É preciso que, mesmo dispersos/as por diversos lugares e cada um/a com a sua luta, no meio da dispersão do mundo, formemos uma rede de cenáculos, ou seja uma teia invisível, ecumênica e libertadora, importante para as Igrejas e para o mundo.
Em 1968, quando na Europa, a juventude protestava contra tudo, o sociólogo tcheco Theodore Rozvak escreveu sobre a Contracultura. Em um texto citado por Luiz Alberto Gomez de Souza – Rozvak afirma que quando o Império Romano entrou em declínio e as sociedades na Europa buscavam uma base para se firmarem, encontraram essa base no que ele chama de “paradigma monástico”. De tato, naquela época, foram os mosteiros beneditinos que ao insistirem na cultura da paz (em uma Europa convulsionada pelas constantes invasões dos então chamados bárbaros), na prática da agricultura, no valor do trabalho e nos valores comunitários, conseguiram formar gerações e construir um novo modelo de civilização.
Rozvak propõe que, atualmente, para além de qualquer pertença religiosa, o paradigma cultural monástico possa oferecer algo de novo e de importante para refazer as relações sociais e refazer uma cultura de paz.
Nesse mundo dividido, o projeto comunitário de tipo alternativo e subversivo ao modelo do mundo atual continua atual e necessário.
Uma pesquisa recente que apareceu no site do IHU (Instituto Humanitas – de São Leopoldo, RS) dizia que no Brasil, existiam 775 projetos ou experiências concretas de comunidades religiosas de tipo novo. A maioria delas ligada a movimentos carismáticos e com fortes acentos conservadores e “de direita”. No entanto, algumas são mais abertas e originais. É cada vez mais urgente que as pessoas com vocação para transformar esse mundo formem redes ecumênicas de apoio mútuo e de abertura espiritual a toda humanidade, círculos comunitários, verdadeiros cenáculos de resistência e comunhão que ajudem os seus próprios membros a se converterem e, assim, possam ser ensaios de um mundo novo possível.
O desafio permanente para todos os nossos grupos é sempre partir do interior de cada irmão e irmã, membro do grupo. Vivemos em comunidade porque precisamos nos converter sempre. Assim como aconteceu com os primeiros cristãos, as pessoas que nos veem podem perceber nossa fragilidade e nossos defeitos (somos iguais a eles e elas). Mas é importante que, seja como for, possam dizer como se dizia dos primeiros cristãos: “Vejam como eles se amam”.
Marcelo Barros, monge beneditino, teólogo e biblista, assessor das comunidades eclesiais de base e de movimentos sociais. Tem 55 livros publicados, dos quais o mais recente é “Conversa com o evangelho de Marcos”. Belo Horizonte, Ed. Senso, 2018.