Existem aqueles que poupam e juntam os centavos pelos quatro cantos da casa, para pagar o pão e o leite do dia seguinte; e existem os que, em uma só jogada de gala, atiram pela janela milhões em uma aposta na corrida de cavalos. Alguns, num único encontro com os amigos, desperdiçam fortunas nos manjares mais requintados, regados com os licores e vinhos mais finos; e outros, do lado de fora, como o pobre Lázaro do Evangelho, anseiam pelas migalhas que caem da mesa do banquete.
Há gente pela rua que, de daqui e dali, recolhe seus parcos pertences, na tentativa de passar a noite ao abrigo de qualquer cobertura, fugindo da chuva e do frio; e há gente que sequer sabe quantas mansões possui espalhadas pela cidade, pelo campo ou pela praia, em grande parte vazia.
Multidões marcham, dia após dia, por quilômetros e quilômetros, em busca de um solo que possa ser chamado de pátria; uma minoria de proprietários acumula em suas mãos terras e mais terras, em latifúndios vazios e improdutivos… Os exemplos poderiam multiplicar-se por páginas e páginas. Centavos e milhões representam, respectivamente, miséria, subnutrição e fome, de um lado, e, de outro, riqueza, luxo e ostentação: ambas crescem em proporção recíproca e exponencial.
Trata-se, evidentemente, de casos extremos. O espectro das assimetrias socioeconômicas, na realidade, é bem mais diversificado, plural e complexo. Entre os polos opostos, o cenário das desigualdades entre indivíduos, grupos, empresas, empreendimentos, conglomerados, classes, regiões ou países – descortina uma imensa variedade de situações intermediárias.
Os extremos, porém, servem para alertar-nos sobre a estrutura atual da economia globalizada, onde o pico e a base da pirâmide social aprofundam cada vez mais o abismo que divide o andar de cima dos andares de baixo. O quadro vem se agravando progressivamente a partir da crise da década de 1970, a tal ponto que nestes 50 anos os andares médios da pirâmide (onde efetivamente existiam) sentem-se cada vez mais sacrificados e relegados. Disso resulta a coexistência de um pequena porção de super ricos, ao lado da enorme massa de “os condenados da terra”, para usar o título da obra de Frantz Fanon, publicada pela primeira vez ainda em 1961.
Isso significa que a economia mundial hoje, nos moldes em que se desenvolve, produz contemporaneamente concentração de renda e exclusão social. Os economistas, sociólogos e demais estudiosos não se cansam de ilustrar semelhante disparidade através de dados e números, estatísticas e tabelas, gráficos e percentuais de análises cada dia mais alarmantes.
A crise prolongada do último meio século constitui terreno fértil para quedas e falências, bem como para ascendências e oportunismos anômalos. Mas, como todo estado de incerteza e insegurança, é também terreno fértil para projetos políticos igualmente anômalos. Daí a onda da extrema direita que, a partir dos Estados Unidos, vem se estendendo pelas mais variadas partes do planeta, chegando ao continente verde e amarelo chamado Brasil.
Com fúria inusitada, alastra-se e se consolida o nacionalismo de épocas pretéritas. Revestido com a máscara do populismo, o renascimento de uma identidade nacional mórbida e doentia não se resume, porém, a um punhado de candidatos recentemente eleitos. Ela brota e cresce a partir do chão, do medo difuso entre determinados estratos da população.
São os representantes dessas fatias populares que, nas urnas, depositam sua confiança em “regimes fortes”, elegendo políticos duros e intolerantes, como se a força bruta fosse o único meio de exorcizar o fantasma da desordem econômica e social. Está em jogo, além disso, uma espécie de identidade nacional baseada não tanto sobre os valores culturais e históricos de um povo, e sim sobre uma atitude de oposição, não raro gratuita e intransigente, diante de quem chega de fora – o outro, o diferente, o estrangeiro. Estrangeiro como estranho, como problema, risco e ameaça, pronto para representar o papel de “bode expiatório” dos tempos contemporâneos.
O resultado aparece em forma de estridente contradição. De uma parte, dada a situação de crise, a qual sempre sacrifica os povos, regiões e países menos desenvolvidas e mais vulneráveis, multiplicam-se a fuga, o êxodo, a marcha ou a migração sistemática de milhões e milhões de pessoas. Deixam a pobreza e a violência, na tentativa de encontrar o trabalho, o pão e a paz. Tornam-se prófogos, refugiados, errantes. De outra parte, a visão fechada, discriminatória e intolerante da política econômica induz a uma legislação antimigratória e xenofóbica. O impasse tem reflexos imediatos e cinematrográficos nas fronteiras geográficas, em modo particular naquelas que separam as economias centrais dos países periféricos.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs – Bassano del Grappa, Itália, 12 de novembro de 2018