Este texto foi originalmente publicado no jornal O Globo.
Abusam de meu nome no Brasil. Estranho que, em um país tão cristão, outrora conhecido como Terra de Santa Cruz, muitos parecem ignorar o Decálogo que entreguei às mãos de Moisés, e cujo segundo mandamento é “Não tomar em vão” meu Santo Nome.
Há políticos que não fazem outra coisa. Evocam-me sem o menor escrúpulo e a qualquer pretexto. Até na ONU, instituição laica e plural, meu Nome foi citado na finalização de um discurso presidencial repleto de falácias e eivado de ódios e discriminações.
Confesso que me sinto incomodado desde que me usaram como jargão na campanha eleitoral: “O Brasil acima de tudo; Deus acima de todos”. Ora, o Brasil não é um disco voador que paira acima de tudo. O Brasil é toda essa gente que ocupa esse extenso e rico território. Essa gente sofrida, desempregada, que é alvo de operações policiais que disparam a esmo, assassinando crianças como Ágatha Félix que, agora, brinca com os anjos no Céu. Esses ricos que, nos últimos sete anos, tiveram 8,5% de aumento na renda, e os pobres que, no mesmo período, perderam 14% da renda.
E Eu, é bom frisar, não estou acima de todos. Estou entre vocês, povo brasileiro, e dentro de tudo: na árvore derrubada pela motosserra na Amazônia; na água do rio envenenado pelo mercúrio dos garimpeiros; no coração dos torcedores que lotam os estádios de futebol; e também no dos policiais emboscados por bandidos.
Nada, neste Universo, prescinde de minha amorosa presença. E, pelo amor de D…, ou melhor, por favor (pois não quero parecer cabotino), não confundam o que digo com panteísmo. Panteísta crê que tudo é deus. Apoiem, sim, os panenteístas, que acreditam, com razão, que Eu me faço presente em tudo que criei.
Devo frisar, porém, que não criei a desigualdade social, a devastação ambiental, a misoginia, a homofobia, o preconceito étnico etc. Todas essas aberrações não resultam de minha divina vontade. São frutos amargos da injustiça humana.
Por favor, não atribuam a mim males e crimes que vocês provocam. Dei-lhes liberdade porque sou, essencialmente, um Ser amoroso. E só há liberdade onde reina o amor. Se tivesse criado todas as pessoas como autômatos programados a fazer sempre o bem, eu me negaria. Isso seria o mundo de um tirano, e não de um Deus cujo único sinônimo é Amor. Como ser amoroso, só poderia tê-los criado com livre arbítrio. Tão livres que podem até me dar as costas ou negar a minha existência. E, ainda assim, jamais deixarei de amá-los. Como bem afirmou o papa João Paulo I, sou mais Mãe do que Pai.
Rogo aos que me são fiéis não admitir que tomem o meu Santo Nome em vão. Denunciem e combatam os que me evocam para extorquir os pobres, aqueles que pregam ser Jesus o caminho, mas insistem em cobrar o pedágio… Rejeitem os que ostentam o meu Nome para ampliar seus negócios, impor suas leis injustas e oprimir o povo. Façam o que fez meu Filho. Não se aliou aos fariseus hipócritas. Não bajulou os abastados, mas despediu-os com as mãos vazias. E deu a sua vida para que “todos tenham vida e vida em abundância”, como registrou João no Evangelho.
Dito isso, retorno à minha comunhão trinitária. E, reitero, estou presente em todas as coisas criadas. Basta que vocês tenham coração para amar, mãos para partilhar, pernas para prosseguir no rumo da esperança, e olhos para ver luz mesmo onde parece reinar trevas.
Frei Betto é escritor, autor de “Fome de Deus” (Paralela/Companhia das Letras), entre outros livros.