Publicamos, abaixo, a fala de Dom Julio Endi Akamine, Bispo Auxiliar de São Paulo e Vigário Episcopal da Região Lapa, na abertura do 28° Curso de Verão – “Juventude e Relações Afetivas”.
XXVIII CURSO DE VERÃO – JUVENTUDE E RELAÇÕES AFETIVAS
Saudações:
Pe. José Oscar Beozzo e Cecília Bernadete Franco (orgs.)
“O intuito maior do Curso de verão foi, e continua sendo, contribuir para a formação das pessoas, especialmente dos jovens, e colaborar para que assumam, com entusiasmo e com mais preparo, a tarefa de animadores e de formadores de novas lideranças e em suas comunidades, movimentos sociais, conselhos municipais. Auguramos que caminhem na fidelidade aos valores da educação popular, do ecumenismo, do serviço aos setores populares, dentro do espírito de gratuidade do mutirão”.
- Para começar
Leio para vocês um breve texto para iniciar.
“A juventude de hoje está corrompida até o coração. É má, ateia e preguiçosa. Jamais será o que deveria ser, nem será capaz de preservar nossa cultura”.
O que você experimenta ouvindo isso? Aflição, alegria, angustia, ansiedade, antipatia pelo seu autor, arrependimento, bem-estar, confusão, constrangimento, culpa, curiosidade, depressão, desapontamento, dó, decepção, frieza, frustração, hostilidade, humilhação, incômodo, indiferença, indecisão, ira, mágoa, medo, melancolia, nojo, ódio, orgulho, pânico, pena, preocupação, raiva, remorso, repugnância, resignação, sofrimento, surpresa, tristeza, vergonha?
Se você teve uma ou várias dessas reações não se preocupe, você é normal. Você tem a capacidade de reagir emotiva e sentimentalmente às palavras desse texto que acabei de citar.
É bom saber que esse texto foi tirado de uma inscrição gravada numa tábua de argila babilônica datada do séc. XI a.C. Como você pode ver, os profetas da desgraça já vêm fazendo seu trabalho de anunciar tempos sombrios já há muito tempo. Não vamos nos juntar a eles; é claro! Se pensássemos do mesmo modo não nos incomodaríamos em fazer um curso de verão. Seria melhor aproveitar o sol e o calor e ir para a praia para tomar cerveja em vez de vir a São Paulo para um trabalho de formação e de educação.
Por isso, gostaria de parabenizar a todos os participantes, os organizadores deste curso de verão. Parabéns também aos voluntários, as famílias acolhedoras, os apoiadores e todas os envolvidos neste curso de verão.
O verdadeiro descanso é incompatível com a preguiça. Usar bem o tempo das férias nos ajuda a cultivar o espírito, a estimular nossa criatividade, para formar o caráter e para enobrecer as pessoas.
Para trabalhar bem é preciso descansar bem. Mas o inverso é também verdadeiro: para descansar bem é preciso ter trabalhado bem. Sem trabalhar bem, sem concluir “a boa obra” não há verdadeiro descanso. Deus descansou no sétimo dia não porque necessitasse de repor as energias gastas. Ele descansou porque completou a obra da criação do céu e da terra; porque realizou “a obra muito boa” da criação da humanidade.
O preguiçoso trabalha de má vontade para depois aborrecer-se no tempo livre. Ele é incapaz de aproveitar a vida e de dar a si mesmo um descanso autêntico porque incapaz de realizar a boa obra.
- Para continuar
Podemos apontar a educação da afetividade como uma obra muito boa a ser realizada neste verão (e também ao longo de toda a vida). A educação da afetividade é um aspecto decisivo na educação não só dos jovens mas das pessoas independentemente de idade.
Mais do que isso: a educação da afetividade é necessária também para a nossa salvação. A fé cristã não é alheia à educação da afetividade, pois compreende a salvação como uma oferta para a realização da pessoa humana como um todo. “Na vida cristã, o Espírito Santo realiza sua obra mobilizando o ser inteiro, inclusive suas dores, medos e tristezas” (Catecismo da Igreja Católica, 1768).
O cristianismo vive do mistério da encarnação. Uma vez que o Verbo de Deus se encarnou, nada do que é autenticamente humano é indiferente para a sua salvação.
Os sentimentos e as emoções são componentes naturais do psiquismo humano; constituem o lugar de passagem (cf. Catecismo da Igreja Católica, 1764) e garantem a ligação entre os “dois andares” que constituem a nossa personalidade. De maneira um tanto livre, tomo emprestada a metáfora da casa de dois andares do prof. Edward Neves Guimarães (cf. Curso de Verão, Ano XXVIII, p. 81-87).
Nós somos como uma casa de dois andares: no andar de baixo estão cinco janelas: a visão, o olfato, o tato, a audição e o paladar. No andar de cima temos quatro janelas: o senso da beleza, o senso da verdade, o senso da bondade, o senso do mistério.
É aquilo que tradicionalmente se chamava a vida sensitiva e a vida espiritual. Ora, a afetividade é a escada que une e faz a comunicação dos dois andares: o que recebemos pelos sentidos são levados para a vida do espírito pela afetividade e é a afetividade que conduz a vida do espírito para a nossa vida sensitiva.
Nossos cinco sentidos captam e sofrem as impressões do meio circunstante em uma quantidade imensa de informações que são processadas em nosso espírito. Mas as impressões sensoriais não chegam até nós em seu estado bruto; elas são apropriadas por nós já carregadas de sentimentos e emoções.
Tais sentimentos e emoções são acolhidos e enriquecidos de valores, significados e conceitos em nosso espírito. Podem por fim ser comunicados e partilhados com os outros através de nossos sentidos.
Dou um exemplo. O olhar capta as imagens e vê. Posso ver você; a forma do seu corpo e da sua face; percebo seu modo de se vestir, de caminhar, de gesticular. Posso ainda notar seus olhos, suas mãos, seus lábios. Percebo os traços característicos que o tornam único; detecto feridas e cicatrizes; pequenas “imperfeições”. Chego até mesmo a perceber sinais que expressam o que você traz no interior e debaixo do que meu olhar capta à primeira vista. Parece-me que você está triste ou alegre ou preocupado ou interessado em mim.
Todas essas impressões incidem em meus olhos e causam em meu interior sentimentos diversos, sentimentos coincidentes e contrários.
Com grau maior ou menor de consciência caio na conta de estar diante de alguém, de uma pessoa. Não se trata de um objeto fabricado em série, mas de um mistério que meu olhar de alguma forma mais intui do que capta. Tomo consciência de que estou diante de alguém com uma história de vida que desconheço, de alguém que experimentou a dor e a alegria deste mundo relativamente acolhedor e duro, que tem sonhos e desejos, que tem suas qualidades e defeitos.
Descubro admirado e assombrado que o que meu olhar vê é somente uma partícula de um universo insondável; que estou diante de um outro que me promete a surpresa: a felicidade do encontro e/ou a desilusão da solidão. Caio na conta de que estou diante do oceano muito mais profundo do que a superfície que o meu olhar pode ver.
Ao ser surpreendido com o mistério do outro, meu olhar pode se tornar também mais significativo: ele não somente vê; agora pode também comunicar admiração, temor, fascínio pelo outro. O olhar não somente capta, mas também transmite a profundidade de meu espírito que recebeu os sentimentos causados pelo outro e os devolve agora enobrecidos e enriquecidos de meu mundo interior através da janela de meu olhar.
Espero que este exemplo simplificado possa ajudá-los a entender o porquê da importância da educação da afetividade.
Por isso é tão importante a educação da afetividade. Sem ela a nossa casa fica sem escada, sem uma boa educação afetiva sofremos de uma cisão interior desumanizadora.
- Para tentar ajudar
Nesse sentido gostaria também eu de dar aqui meus palpites.
a) Para educar a afetividade corretamente é necessário conhecer as emoções e os sentimentos. Isso não é óbvio? Sim. Mas infelizmente as coisas mais básicas parecem ser as que menos damos atenção e por isso as intuições mais criativas e geniais, as teorias mais bem elaboradas e científicas acabam em completo fracasso. Sem “dar nome aos bois” é impossível educar a afetividade.
Nós temos sentimentos e emoções, somos movidos por eles, mas não temos consciência deles. Eles nos movem e nos dominam a todo momento, mas não os trazemos à consciência. É pela escada de uma afetividade educada que os sentimentos e emoções podem ser conduzidos ao andar de cima. Conhecer os sentimentos e emoções, saber os seus nomes é um pressuposto necessário para conhecer a si mesmo.
b) Para educar a afetividade é preciso não só conhecer mas também aceitar os sentimentos e emoções. Em si mesmos as emoções e os sentimentos não são nem bons nem maus. Dou exemplos para maior clareza. A alegria, enquanto sentimento ou emoção, não é nem boa nem má. A tristeza não é, em si mesma, boa ou má. É o que fazemos com tais sentimentos que determinam se eles são bons ou maus. “As emoções e os sentimentos podem ser assumidos em virtudes ou pervertidos em vícios” (Catecismo da Igreja Católica, 1768).
c) Para educar a afetividade é preciso integrar os sentimentos e emoções na prática do bem. Retorno à metáfora da casa de dois andares. A afetividade educada é que me permite conhecer e aceitar que tenha sentimentos de raiva, ódio, cólera, tristeza. Ela conduz tais emoções para o andar de cima. E é no andar de cima que se dá o discernimento das motivações desses sentimentos. É no andar de cima que os sentimentos podem ser integrados na prática do bem.
d) Para educar a afetividade é necessário exprimir de maneira consciente e construtiva os sentimentos e as emoções. É a afetividade educada que conduz o que foi elaborado e integrado no andar de cima para o andar de baixo. Posso exprimir sentimentos de raiva ou de alegria uma vez que estes foram integrados na virtude. Foi uma afetividade educada que permitiu que Jesus exprimisse toda a sua raiva e cólera de maneira justa e construtiva quando ele expulsou os vendilhões do templo. Ele exprimiu sua indignação quando enfrentou a hipocrisia dos doutores da lei. Foi também uma afetividade bem educada que fez com que a sua misericórdia se exprimisse em gestos afetivos de compaixão, de tristeza e de alegria. “Em Cristo, os sentimentos humanos podem receber sua perfeição na caridade e na bem-aventurança divina” (Catecismo da Igreja Católica, 1769).
- Para concluir
A nossa casa tem dois andares. Viver só no andar de baixo é infraumano, viver só no andar de cima é impossível; viver sem escada que liga os dois andares é desumano.
A plena realização da pessoa humana não consiste somente em que ela seja movida ao Reino de Deus unicamente pela sua vontade mas também pelos seus sentimentos e emoções.
Educar a afetividade consiste em alcançar de maneira prática o ideal que é expresso no salmo 84,3: “Meu coração e minha carne exultam pelo Deus vivo.
Dom Julio Endi Akamine