Toda nossa solidariedade, como pessoas e como CESEEP a seus familiares e amigos e aos povos indígenas do Vale do Javari, cujas vidas e territórios eles sempre defenderam e por isto foram eliminados. Toda nossa indignação pela criminosa omissão do governo brasileiro, quando não seu apoio aos invasores dos territórios indígenas: garimpeiros, madeireiras, grileiros, latifundiários, mineradoras.
Pe. José Oscar Beozzo
Reprodução UOL
É irônico que o ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, afirme que as Forças Armadas se sentem desprestigiadas porque suas sugestões de mudanças sobre o sistema eletrônico de votação foram rejeitadas pelo Tribunal Superior Eleitoral.
Porque a população também se sente desprestigiada quando as Forças Armadas não evitam que a fronteira brasileira seja uma peneira, permitindo, por exemplo, o crime organizado no Vale do Javari, onde Bruno Araújo e Dom Phillips foram atacados, ou fuzilam inocentes ao invés de protegê-los ou ainda gasta dinheiro do contribuinte comprando próteses penianas.
Servindo de aríete ao presidente Jair Bolsonaro, que tenta demolir a democracia derrubando um dos seus pilares, a credibilidade das eleições, o comando das Forças Armadas usou o assento que conseguiu na Comissão de Transparência das Eleições do TSE para fazer questionamentos, muitos dos quais sobre problemas que não existem.
As Forças Armadas – que não têm mandato para ser poder moderador, nem babá da República – enviaram 88 questionamentos ao Tribunal Superior Eleitoral sobre o que acreditam ser riscos do processo de votação. A maioria das perguntas dos militares está alinhada às críticas sem fundamento do presidente quanto às urnas eletrônicas.
E agora chia despropositadamente para fazer o barulho que Bolsonaro deseja contra o tribunal – que, vale ressaltar, não é obrigado a seguir sugestões. Ainda mais as que não fazem sentido.
Jair quer que as Forças Armadas façam uma contagem paralela, o que acabaria com o sigilo do voto. Enquanto isso, há aliados do governo, no Congresso Nacional e nas redes sociais, defendendo que os militares interfiram diretamente no processo eleitoral, corrigindo o que acham que sejam falhas. Leia-se no lugar de “falhas” as garantias de que o presidente não conseguirá manipular os resultados caso eles o desagradem.
No final das contas, Bolsonaro sabe que não conseguirá colocar uma mão peluda sobre o TSE. Mas usa toda essa energia para corroer a imagem da corte e do Supremo Tribunal Federal a fim de questionar as decisões deles daqui até o final do ano.
Forças Armadas têm mais tempo para atacar a urna do que para o Vale do Javari
Se a cúpula das Forças Armadas dedicasse a mesma energia com a qual está encarando o ataque ao Tribunal Superior Eleitoral na fronteira Oeste da Amazônia brasileira, talvez a história do indigenista Bruno Araújo e do jornalista inglês Dom Phillips tivesse sido diferente.
Antes de mais nada, o presidente produz uma cascata quando afirma que, desde o início, as Forças Armadas estavam dedicadas na busca de ambos. Quem, inicialmente, estava tocando as buscas eram os próprios indígenas com a ajuda de policiais militares dada a inoperância do poder público federal.
O Exército chegou a soltar uma nota bizarra, afirmando que era capaz de fazer as buscas, mas aguardava ordens. Após muita pressão da imprensa, um contingente de forças de segurança foi enviado, mas insuficiente para fazer frente ao desafio com rapidez.
A região é um dos pontos mais desprotegidos da fronteira, o que garante a traficantes de drogas atuarem livremente entre o Brasil, o Peru e a Colômbia, impondo sua ordem a populações indígenas e comunidades ribeirinhas. A presença seletiva do Estado, que chancela a ação de madeireiros, pescadores, caçadores e garimpeiros ilegais e ataca instituições de monitoramento e controle, garante uma cara de terra de ninguém. Exemplo disso foi o próprio Bruno, exonerado da Funai por cumprir de forma competente seu trabalho de fiscalização.
Claro que não depende apenas da vontade de generais o aumento de contingente e a garantia de infraestrutura para que possam cumprir suas funções. Mas se eles se manifestassem publicamente por mais recursos para proteger aquela região com o mesmo vigor com o qual criticam o TSE, certamente seriam ouvidos.
Isso, contudo, não interessa ao presidente da República, um dos responsáveis por piorar o clima de “liberou geral” no Vale do Javari. A subserviência a Jair esvazia, portanto, o discurso dos militares de que há uma cobiça internacional sobre a Amazônia.
Seria ótimo que essa presteza para servir ao presidente também estivesse presente junto à população mais pobre. Se assim fosse, oito militares não teriam fuzilado com mais de 80 tiros o carro em que o músico Evaldo Rosa dos Santos estava com sua esposa, seu filho de sete anos, uma afilhada, de 13, e seu sogro, indo a um chá de bebê em Guadalupe, Zona Norte do Rio, em 7 de abril de 2019.
Também metralharam o catador de recicláveis Luciano Macedo, que tentou ajudar a família.
Sem receber auxílio dos soldados após o ocorrido, Evaldo e Luciano morreram. Atuando como força policial em operações, não raro eles têm entrado em guerra contra o seu próprio povo.
Escândalos envolvendo Viagra, próteses penianas e gestão da pandemia
Por fim, o caso da compra de Viagra e de próteses penianas pelas Forças Armadas mostram como o atual governo amoleceu os militares.
Indícios de sobrepreço de até 143% na compra de milhares de comprimidos de Viagra pelas Forças Armadas vieram um pouco dantes da informação de que o Exército adquiriu R$ 3,5 milhões em próteses penianas de 10 a 25 centímetros com recursos públicos.
Talvez se adolescentes pobres de escolas públicas e mulheres em situação de rua usassem farda, Bolsonaro não teria vetado, no ano passado, o projeto para garantir distribuição gratuita de absorventes a elas justificando falta de recursos. O país de Jair tem suas prioridades.
Forças Armadas são importantes para qualquer país, desde que saibam quem devem proteger. A sua potência está na capacidade de respeitar a Constituição Federal, não de obter benefícios em troca de ser usada para atender às necessidades de um governo de plantão.
Nos últimos três anos e meio, Jair Bolsonaro conseguiu cooptar parte dos militares com cargos, vantagens na Reforma da Previdência, licitações de produtos de luxo para o oficialato. Cobrou, em troca, sujeição para degradar a democracia e cumplicidade enquanto garantia o vale-tudo ambiental na Amazônia.
Com isso, o chefe do Poder Executivo ajudou no rebranding das Forças Armadas, como já disse aqui. Com o capitão, a imagem transmitida pode ser uma cena de Pier Paolo Pasolini, com um comboio de veículos blindados, tossindo fumaça preta na Esplanada dos Ministérios, enquanto seus membros se beneficiam de Viagra e próteses penianas, camarão e filé mignon, pensões especiais para filhas não casadas e acesso a hospitais especiais.
Ou uma de David Cronemberg, com coronéis articulando bizarras reuniões em que se negocia com reverendos, servidores públicos e indicados de políticos, sobrepreço e propinas para a compra de doses de vacina contra a covid-19 enquanto pessoas morrem por falta de imunizante. Personagens não faltam uma vez que a CPI da Covid citou um rosário de coronéis, como Élcio Franco, Marcelo Blanco, Helcio Bruno…
Ao invés de atacar as urnas eletrônicas, os militares gastariam melhor o seu tempo depurando suas próprias fileiras. Pois há os que, com sua ação e inação, foram cúmplices da montanha de mais de 670 mil mortes por covid-19 fomentada por Bolsonaro, como o general Eduardo Pazuello.
Se tudo isso não é desprestigiar a população, então o Houaiss precisa de uma revisão.
Leonardo Sakamoto – Jornalista brasileiro colunista do UOL