Às vezes, a Mãe Natureza faz as coisas pelo avesso. Em quase todos os pontos do país a água cai torrencialmente, não apenas em pancadas ocasionais, como as tradicionais chuvas de verão, mas em verdadeiras torrentes que a tudo inundam, arrastando casas e vidas em sua marcha implacável e destruidora.
Nas grandes cidades, o desastre não é menor. Os rios transbordam, a rede de esgotos mal preparada para assumir a avalanche de água que cai inclemente e incessante inunda ruas, entra nas casas sem para isso ser convidada e obriga as pessoas a subirem no teto dos ônibus a fim de não morrerem afogadas. As águas transformam o outono em um contínuo e violento dilúvio.
Talvez esta situação que vivemos nos convide a uma frutífera reflexão sobre o que andamos fazendo com o nosso planeta, de tal modo que a Mãe Natureza, a Criação, resolveu rebelar-se e mandar-nos tristes e mortíferos sinais. Em que irresponsáveis desmatamentos e enlouquecidas construções nos estamos metendo para que a água que São Francisco chamou de irmã e que experimentamos tantas vezes como aquela substância translúcida, que cai dos céus nos dias tórridos de verão, refrescando-nos, e que corre, mansa e benfazeja, pelos sulcos da terra, encantando os olhos e fecundando a vida, pareça ser, como nunca, neste ano, nossa inimiga.
Apresenta-se avassaladora, como todas as outras forças da natureza. Sua energia descomunal vem produzindo desastres assombrosos. E num processo crescente, a cada ano parece que mais e mais perdemos o controle que de alguma forma acreditávamos exercer sobre os elementos da natureza, ou pelo menos sobre as conseqüências que seu ímpeto pode provocar. As chuvas não se limitam a fecundar a terra, mas ceifam vidas e mesmo colheitas. Os mares, onde crianças nadam e se deleitam, mostram sua face aterradora: sua vastidão imensurável, seu volume espantoso, sua profundidade inacessível, sua força indomável, faz-nos sentir dramaticamente insignificantes e frágeis. São múltiplas e muitas as experiências humanas face a este elemento. Muitos e múltiplos são, por isso, também os significados da água no universo arquetípico e simbólico.
As Escrituras Sagradas, no Primeiro Testamento conservaram, em suas páginas e relatos, esta ambivalência experiencial da água em dois relatos ricamente simbólicos: o dilúvio e a passagem do Mar Vermelho. No primeiro, a água inunda, destrói e se configura como uma força, frente à qual as criaturas pouco valem. No segundo, ela é representação da justiça divina, abrindo-se para deixar passar os hebreus, o povo eleito do Senhor e fechando-se sobre o Faraó e seus soldados, que perecem castigados pelo próprio pecado. Nos dois casos, podemos, de fato, entrever que, apesar das circunstâncias diferentes, as águas não apenas são essenciais à vida humana, como também remetem ao mistério de Deus. Sua magnitude infinita provoca-nos fascínio mas também temor. Inescrutável, como os abismos do mar, é o seu profundo mistério. Ele nos é verdadeiramente próximo e íntimo. Esta proximidade, porém, não anula sua infinita distância e mistério. À sua frente, nada somos por nossa própria força e o que somos, devemo-lo a Ele. Suave, como a água que escorre sobre o dorso dos corpos e da terra, é a sua presença. Mas igualmente vigorosa e impressionante, como as tempestades que vergam as árvores e revolvem os mares, é a força de seu poder. Justa, abrindo-se diante de seu povo e fechando-se mortalmente sobre seus inimigos, é o braço forte de sua justiça que restaura e corrige.
Diante de mais uma estação que deixa como nunca um saldo amargo de morte e destruições, respeitemos a Mãe Natureza, criação de Deus, que ao ser desrespeitada, torna-se fonte de morte e não de vida para o ser humano que com ela não soube relacionar-se.
Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros.