Juntamente com o grau de urbanização, costumam crescer, simultaneamente a tendência à obesidade e a fome/subnutrição. Dois grandes desafios das metrópoles contemporâneas. Embora tão diferentes e opostos entre si, guardam uma correspondência de verdadeiras irmãs siamesas que, de forma paradoxal e contraditória, caminham de mãos dadas. Duas faces da mesma moeda, dois lados da economia globalizada centrada sobre o capital financeiro e o mercado total.
Cabe aqui uma pergunta: até que ponto os gastos com esforços, métodos, clínicas, medicamentos e cirurgias de estética e/ou de emagrecimento equivalem ou superam os gastos para superar a fome e a subnutrição de cerca de um bilhão de pessoas em todo planeta? Pergunta que mereceria uma apurada pesquisa de campo, cujos resultados certamente nos surpreenderíam negativamente. Isso para sequer falar da preocupação com os casos crescentes de anorexia, alguns ligados ao império da moda, outro paradoxo entre a fuga do excesso de alimento, por uma parte, e a busca do número mínimo de calorias essencial à sobrevivência, por outra.
Cifrões e números, gráficos e estatísticas, preços e códigos de barras desfilam diariamente pela telinha do telefone celular ou pela tela da TV. Representam em geral os indicadores econômicos, marcados pelo sobre-e-desce bolsa de valores; pela taxa de juros e pela cotação do dólar; pelo percentual de alta ou queda do PIB e pelo lucro de empresas, comércio e bancos; pelo déficit ou superávit público… Ao mesmo tempo, porém, tela e telinha costumam silenciar sobre os indicadores sociais, ligados à infra-estrutura de água tratada e esgoto; ao déficit habitacional; ao número de carteiras na sala de aula e de leitos hospitalares em relação ao número de habitantes; à quantidade e qualidade do transporte público; à taxa de emprego e subemprego, nível de salários e poder de compra das famílias; ao trabalho informal, infantil e semi-escravo; aos gastos com segurança e lazer…
Para boa parte da população, talvez represente outra surpresa o fato de constatar que por trás de cada cifrão e de cada número, de cada gráfico e de cada estatística, existem rostos, corações, mentes e almas de pessoas concretas. Gente com feridas e cicatrizes no próprio tecido da existência humana. Gente que, em lugar de “moradia e endereço fixo”, esconde-se nos porões sórdidos da cidade, nas periferias longínquas ou em favelas no alto dos morros e na beira dos riachos. Gente que, por falta de oportunidade, cai vítima ou protagonista nos becos sem saída da droga e do álcool, da violência e da prostituição precoce, do submundo do crime organizado. Gente que tomba e levanta, sofre e luta, sonha e espera pelas migalhas que sobram da mesa de quem se encontra um grau acima na escala social. Gente que se viu banida da terra em que nasceu e, desenraízada e sem rumo, busca a todo custo um solo que posa ser chamado de pátria.
Verdadeira “massa necrosada” de um organismo enfermo. Entre o pico e a base da pirâmide social, luxo e lixo coexistem lado a lado. Próximos e distantes a um só tempo, ambos tendem a aprofundar o abismo que os separa nos momentos de crise, seja esta de caráter político ou econômico – gerando acúmulo de renda e riqueza, de um lado e, de outro, exclusão social. Aliás, a política, a econômia e a precariedae do nível de vida representam três dimensões de uma mesma sociedade marcada por injustiça, desigualdades social, corrupção, e uma série de outros vírus.
Nesse sentido, o recente e excelente livro de Donna Tartt – The Goldfinch (o pintassilgo), ganhador do prêmio Pulitzer de ficção em abril de 2014, representa uma espécie de “olhar materno” a partir do subsolo da sociedade produtiva, informatizada, consumística, apelativa e compulsiva… em busca de algo que dê sentido à existência. A trajetória de Theodore Decker, principal protagonista da obra, traduz a travessia desesperada das pessoas “anormais” na luta por um lugar ao sol.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs